No mundo contemporâneo, as ameaças ao indivíduo e à espécie, à integridade pessoal e à sobrevivência da humanidade, confundem-se em vários níveis sobrepostos. Estamos sujeitos a ameaças que passam pelos conflitos bélicos e pelo terrorismo internacional, ganham maior concretude na criminalidade urbana, e refletem-se na violência do trânsito e na violência doméstica, para daí perpetuarem-se num eterno ciclo. Os efeitos desagregadores do capitalismo flexível, em especial a predominância do binômio mercantilização-competitividade, estão fortemente presentes na vida social.
Esta é também uma “sociedade de risco”, como afirmam alguns sociólogos, especialmente no que se refere à forma como vivenciamos os riscos à saúde e ao meio ambiente. E já está abalada a crença na capacidade da ciência e da tecnologia propiciarem soluções para todos os problemas da vida, assim como a certeza de que o homem pode dominar e aproveitar racionalmente os recursos da natureza.
Para nós, brasileiros, a inflação, a corrupção, a falta de acesso à saúde e à educação, a insegurança no emprego e a violência urbana são mais perceptíveis cotidianamente do que outros riscos globais. Mas, nas economias mais sólidas e influentes, o período de “guerra fria” foi particularmente tenso, e representou um perigo muito real de uma ecatombe nuclear que poderia nos levar ao auto-extermínio, o que contribuiu para o surgimento uma consciência pacifista universal que muitas vezes desconsidera as contingências históricas e o papel civilizador de algumas guerras.
Quanto às ameaças ecológicas ao planeta e à sobrevivência da espécie humana (para não falarmos de tantas outras espécies em risco de extinção), difunde-se rapidamente o conhecimento de que estamos todos “no mesmo barco”; e de que tais ameaças têm origens sistêmicas e globais. A consciência ecológica vem acompanhada de profundas mudanças de mentalidade e de hábitos. Há duas gerações, caçar passarinhos era uma das modalidades mais comuns de brincadeira infantil. Hoje, são as crianças as primeiras a se rebelarem contra qualquer forma de agressão à fauna silvestre. As mudanças estendem-se a um grande espectro de comportamentos cotidianos, que vão desde não jogar lixo na rua até a condenação e restrição do hábito de fumar.
A criação de uma rede mundial de telecomunicações que transforma o planeta numa “aldeia global”; e as relações de interdependência econômica e ambiental, são acompanhadas igualmente de uma globalização da consciência ecológica e pacifista. Sentimo-nos como tripulantes da “espaçonave Terra”, de tal modo que qualquer coisa que se faça em seu interior afetará a todos os passageiros...
Sim, é verdade que existem fortes tendências ao incremento da competitividade e do narcisismo cultural, que impulsionam as pessoas a buscarem o interesse próprio a todo custo, numa espécie de “salve-se quem puder” ou “cada um por si e Deus por todos”. Mas, como tudo o mais na sociedade, há forças que agem em sentido contrário a estas tendências. As ações de defesa à ecologia mobilizando pessoas ao redor do globo são fundamentalmente de natureza solidária e altruística; o florescimento de uma cultura do voluntariado, que leva pessoas desinteressadas a se engajarem em atividades de apoio a quem mais necessita; uma crescente consciência de cidadania acompanhada de maior responsabilidade pela participação nos espaços de decisão coletiva; e maior respeito às diversidades inerentes à condição humana.
A psicologia evolucionária, ou darwinista, sugere que um dos atributos mais importantes para a sobrevivência de nossa espécie é o fato de sermos fundamentalmente cooperativos. Ou seja, se tivesse predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética (tanto ou mais quanto os sentimentos hostis). Além disso, os estudos de psicologia têm revelado o que sabemos intuitivamente: que ajudar o próximo pode fazer tão ou mais bem a quem o faz do que a quem recebe. Isto talvez seja uma expressão da herança evolutiva que apenas mencionei. A solidariedade – embora errática e muitas vezes cega ao que não é transformado em tele-dramaturgia – ainda assim se manifesta fortemente, em todas as partes do mundo, diante das grandes catástrofes climáticas e das guerras.
A cultura e os esportes são veículos poderosos de encontro e de desenvolvimento do espírito de solidariedade e do sentimento de fraternidade universal. Eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo rompem barreiras políticas, culturais e econômicas, e contribuem decisivamente para a paz. O mesmo pode-se dizer sobre as manifestações culturais.
Um exemplo significativo de cultura globalizada me foi dado através de um típico produto da sociedade contemporânea: um dvd. Trata-se de “Yo-Yo Ma Inspired by Bach – Cello Suítes N° 5 & 6”, uma produção internacional em que o violoncelista interpreta suítes de Bach em associação com outros formas de arte. Neste caso, lê-se o seguinte na contracapa do dvd: "Mestre do Kabuki, o ator Tamasaburo Bando embarca numa jornada para descobrir, através da dança tradicional japonesa, a universalidade e emoção da Quinta Suíte de Bach. O resultado é a reveladora, intercultural e transoceânica colaboração com Yo-Yo Ma, sensivelmente documentada pelo diretor Niv Fichman". O interessante disso é que Bach era alemão, Tamasaburo Bando é japonês, Yo-Yo Ma nasceu na França, e é filho de pais chineses, e o diretor Niv Fischman é americano*.
Mais recentemente, ganhou visibilidade um projeto de união entre os povos através da música, que deu origem ao um dvd denominado “Peace through music”, no qual músicos de todas as partes do planeta são conectados tecnologicamente para executarem conjuntamente canções igualmente provenientes de diferentes berços culturais.
Foi a civilização ocidental que inventou os direitos humanos e pregou – a partir do Iluminismo – a necessidade de autonomia individual e de liberdade, a capacidade de pensar por si mesmo recorrendo à razão, e a aspiração ao progresso. Não nos esqueçamos, entretanto, que apesar da crença na “racionalidade moderna”, a humanidade deu abrigo, até muito recentemente, a comportamentos auto-destrutivos e bastante primitivos: o racismo, a escravidão, a desigualdade entre os sexos, a discriminação das minorias, o terrorismo de Estado, a tortura, o genocídio, o totalitarismo, os campos de concentração. Para ficarmos apenas com o primeiro desses crimes, é importante que nos demos conta de que há pouco mais de um século ainda convivíamos, no Brasil, com a vergonha da escravidão como uma instituição legalmente e, para muitos, moralmente aceita. Quase todos eles persistem, aqui e ali, dependendo do desenvolvimento da sociedade civil e dos organismos oficiais. Mas já não são tolerados e alavancados por populações inteiras, como ocorreu com o Holocausto, em pleno século xx, numa sociedade européia econômica e culturalmente desenvolvida.
Sim, estamos – a sociedade como um todo – fazendo grandes progressos, apesar das guerras, dos crimes ambientais, da violência urbana, das iniqüidades sociais que persistem. Nas sociedades desenvolvidas, pelo menos, já não se admite que pais castiguem fisicamente seus filhos, que maridos agridam suas esposas, ou que pessoas sejam discriminadas pela cor de sua pele. Não é pouca coisa.
* Assista a um segmento do vídeo aqui
[Capítulo original de Os outros que somos]