20 dezembro 2009

depressão de natal


Não é incomuns que algumas pessoas tornem-se mais tristes ou angustiadas com a proximidade do final de ano e do Natal. Se você mesmo não é uma delas, possivelmente conhece alguém que seja assim. Na maior parte dos casos são queixas imprecisas e de origem pouco clara: um sentimento de vago de nostalgia, um desconforto indefinido, um estado de tristeza para o qual os americanos têm um nome muito apropriado: blues. Mas pode também acontecer de se instalar um estado de depressão clínica, que necessite intervenção profissional. Há inclusive estatísticas que mostram que nessa época ocorre um aumento significativo no número de suicídios.

Um dos sinais típicos desse fenômeno é o adiamento das compras e dos preparativos para o Natal e o Ano Novo. O que deveria ser motivo de entusiasmo e alegria torna-se um fardo, e na medida em que essas datas se aproximam mais pesado ele se torna. Aumenta a ansiedade e com ela a irritabilidade e a tristeza. Num momento em que tudo à volta remete a sentimentos de alegria e à busca de proximidade, a pessoa sente-se extremamente inadequada, pois deseja isolar-se e não sente desejo de confraternizar-se. Sente-se culpada por não estar participando da alegria dos amigos e familiares, e fica ainda mais deprimida.

Não raro as pessoas conseguem identificar um ou mais fatores que contribuem para estarem depressivas. A perda de qualquer ente querido numa época marcada pela reunião familiar é um forte motivo de depressão. Não apenas a perda por falecimento – especialmente quando recente – mas a falta de filhos que foram morar longe ou a saudade de um irmão que há tempo não se vê. O mesmo vale para as separações conjugais e tudo o mais que possa contribuir para a solidão. As dificuldades financeiras e a impossibilidade de realizar os desejos das pessoas amadas, especialmente das crianças, podem estar também implicadas como causas.

Muitas vezes, entretanto, a pessoa que está acometida desse estado depressivo não consegue identificar nenhum motivo razoável, o que só faz aumentar a culpa e o sentimento de inadequação. Experiências infantis significativas tendem a ser reativadas pela proximidade das festas. Nem sempre experiências boas, diga-se de passagem. Um pai de família pode vivenciar sentimentos muito ambivalentes de alegria e tristeza ao propiciar aos seus filhos aquilo que ele mesmo não teve na sua infância. O Natal pode remeter a lembranças da ausência do pai, de cenas de violência doméstica, ou da miséria que sonegava os presentes tão desejados por ele quando era criança.

Aliás, é bom lembrar que relacionamentos humanos são, por natureza, ambivalentes. Tanto mais quando se trata das relações familiares, tratadas culturalmente como sagradas. Quando as famílias se reúnem, assim como se renovam os vínculos de amor, reativam-se também – geralmente num nível inconsciente – sentimentos de competição, de inveja e ciúme, assim como ressentimentos e mágoas antigas. Por essa razão o ato de presentear pode vir a ser um verdadeiro problema para alguns. As compras de Natal envolvem não apenas decisões de economia financeira (o quanto posso gastar), mas também aquelas de economia emocional (o quanto quero gastar, se baseio minha escolha no valor econômico do presente ou no significado emocional, se quero expressar gratidão ou mostrar-me superior ao outro, etc.). Quanto maior o conflito e a ambivalência, tanto maior poderá ser a angústia envolvida. A pessoa pode ficar muito indecisa e ter dificuldade de fazer uma escolha, ou então sentir-se cansada, frustrada, ou mesmo irritada por ter de presentear determinadas pessoas. Lidar com esses sentimentos pode ser difícil, especialmente quando não estão muito claros para quem os vivencia.

Muitos não se dão conta de que o período de final de ano é particularmente estressante também do ponto de vista das tarefas práticas. Organizar festas, comprar presentes, preparar viagens, gerenciar orçamentos e pessoas, tudo isso pode ser fonte de muita ansiedade. Mas há ainda outro aspecto importante: o final de ano é um momento de avaliação de ganhos e perdas, de sucessos e fracassos. É nessa época que olhamos para trás e constatamos quantos de nossos planos se realizaram, e quantos não. Parece haver uma percepção comum de que o tempo vem passando mais rápido, e com ela, a sensação de que não damos conta de fazer tudo o que havíamos planejado, que estamos perdendo oportunidades, que estamos envelhecendo mais rapidamente do que gostaríamos... O final de ano é uma ocasião que praticamente nos impõe a reflexão sobre nossas vidas e a passagem dos anos. A inexorável passagem do tempo, nas palavras de Roberto Bolaño, “o estalido dos anos, o despenhadeiro das ilusões, a quebrada mortal dos afãs de todo tipo”.

No ano que vem tem mais....


14 junho 2009

saudade, 1899



Saudade, de José Ferraz de Almeida Júnior (1850-1899), Pinacoteca de São Paulo.


fim de romance, 1912



Fim de romance, de Antonio Parreiras (1869-1937), Pinacoteca de São Paulo

14 abril 2009

miles



brubeck



Blue Rondo a la Turk (Dave Brubeck)
Take Five (Paul Desmond)

cover: watercolor illustration by graphic designer Milton Glaser

13 abril 2009

natureza humana


Porque somos como somos? A psicologia evolucionista e a natureza humana

Por Maria Emília Yamamoto

A relatividade temporal das adaptações está sempre presente, uma vez que um organismo que consegue sobreviver e reproduzir passa para seus descendentes as adaptações a aspectos do ambiente que estavam presentes em seu tempo de vida. Esta mesma adaptação pode passar para várias gerações seguintes, mesmo que o ambiente tenha mudado, pois as mudanças produzidas na população pela seleção natural podem levar um tempo muito mais longo do que as alterações do ambiente, que podem ser muito rápidas. Por exemplo, a agricultura e a pecuária surgiram há apenas 10 mil anos, o que em termos evolutivos é um período muito breve. Essas “novidades” evolutivas permitiram, entre outras coisas, a passagem de uma vida nômade para o estabelecimento de locais fixos de moradia e a produção de excesso de recursos, que deu origem a um crescimento dramático da população. Passamos então, muito rapidamente, para um modo de vida de caçador-coletor, caracterizado por pequenos grupos nômades, com alto grau de parentesco, para grupos urbanos em cidades superpopuladas, nas quais cruzamos todos os dias com pessoas que nunca mais veremos novamente. Esse período de 10 mil anos foi insuficiente para que várias das adaptações ao modo de vida caçador-coletor fossem substituídas por adaptações a aspectos mais recentes do meio ambiente. Podemos então dizer que somos criaturas pré-históricas vivendo em um mundo moderno e, como tal, mantemos vários traços que respondem a desafios enfrentados por nossos ancestrais em um passado distante, o Ambiente de Adaptação Evolutiva (AAE).

Quando o ambiente muda, o comportamento pode se mostrar inadequado às novas circunstâncias. Obviamente, as pressões seletivas podem levar à evolução de novas adaptações, porém, o tempo necessário para que elas evoluam é sempre muito mais longo do que o necessário para que as alterações ambientais ocorram. Em consequência, alguns dos comportamentos que exibimos estão mais bem adaptados ao AAE do que ao ambiente atual. Ao analisar o comportamento é importante considerar, portanto, não apenas as causas presentes no tempo de vida do indivíduo, ou causas próximas, mas também como nossa natureza foi moldada pelos desafios que nossos ancestrais tiveram que enfrentar, e que resultaram em uma espécie com as características que reconhecemos como humanas. Em outras palavras, somos como somos porque nossa espécie e as espécies que a antecederam superaram desafios colocados pelo ambiente que levaram à modelagem da natureza humana, e porque com essa mesma natureza básica hoje enfrentamos um ambiente em grande parte diferente daquele no qual ela foi moldada.

Porém, nosso comportamento parece tão distinto do de nossos ancestrais que é difícil aceitar que somos de fato os mesmos. Na realidade, somos o produto de nossa biologia tanto quanto o somos de nossa cultura. A espécie humana, talvez mais do que qualquer outra espécie, apresenta uma incrível plasticidade comportamental que é considerada um dos padrões mais importantes na história da evolução humana e que responde por essa incrível diversidade entre as várias populações humanas.

[...]

Porém, atualmente, novas preocupações – que nunca estiveram presentes em nossos ancestrais – nos perseguem: o sobrepeso e a obesidade. Especialmente na sociedade ocidental há alimentos em excesso. Desses, parecemos preferir aqueles que são gordurosos e doces, exatamente aqueles que os médicos nos sugerem evitar. Infelizmente, assim como herdamos preferência pelos gostos básicos, também herdamos de nossos ancestrais um grande apetite, especialmente por alimentos gordurosos e doces. No ambiente no qual nossos ancestrais viveram, esses tipos de alimento eram escassos ou os nutrientes eram pouco concentrados nos alimentos disponíveis. Por esta razão, nossos ancestrais gastavam grande parte do tempo à procura de alimentos para suprir as necessidades de gorduras e açúcares e, quando os encontravam, provavelmente consumiam em grande quantidade; afinal, não podiam prever quando os encontrariam novamente. Além disso, a própria atividade de procura de alimento e a vida nômade faziam deste nosso ancestral um indivíduo extremamente ativo, ao contrário do sedentarismo da moderna vida urbana. Respondemos ao alimento e à atividade física como se vivêssemos em um mundo com escassez de alimentos ricos em gorduras e açúcares e com exigência de altos níveis de atividade física. Resultado: excesso de peso.

Tendo em vista esse grande apetite herdado e a disponibilidade de alimentos durante todo o ano, processados de forma a se tornarem mais saborosos (com maior concentração de açúcares e gordura), não é de estranhar que o problema de sobrepeso tenha adquirido grande destaque em nossa sociedade. Com os alimentos disponíveis conseguimos suprir nossa necessidade diária de nutrientes e ingerimos facilmente mais do que precisamos. No passado evolutivo, nossos ancestrais enfrentaram problemas de saúde pela falta de gordura e açúcares na dieta. Hoje, enfrentamos problemas de saúde pelo excesso de gordura e açúcares. (mais)


Comentário: um exemplo claro de mecanismo adaptativo ancestral que se tornou disfuncional em nossos tempos é a chamada "reação de luta e fuga" (fight or flight reaction), denominação dada ao conjunto de mudanças fisiológicas que ocorrem nos animais diante de um perigo, e que nos acompanham até hoje como parte sintomas físicos de ansiedade. Entre estas mudanças estão o aumento da frequencia cardíaca e da pressão arterial (necessários ao aumento da vascularização muscular); o aumento da ventilação pulmonar (oxigenação); dilatação pupilar (amplitude visual); e tensão muscular (rápida ação). Se tais reações eram importantes para o combate a animais predatores ou a tribos inimigas, elas de pouco valem para enfrentar os perigos que rondam o homem contemporâneo, especialmente aqueles que dizem respeito à sua sobrevivência material (perda de emprego, por exemplo) e emocional (as demandas por sucesso e status social, o narcisismo cultural, etc.). Tais eventos fisiológicos, que ocorriam diante de uma ameaça física, continuam ocorrendo hoje, quando os perigos são muito mais direcionados à nossa segurança ontológica e nossa auto-estima, e fazem parte dos sintomas mais comuns da ansiedade.
PS. É claro que existem riscos também a nossa integridade física, especialmente quando estamos expostas à violência urbana. Nesses casos, entretanto, e infelizmente, de pouco nos adiante correr...


28 março 2009

quartetos de beethoven


Os últimos quartetos para cordas de Beethoven são considerados por muitos críticos o ápice de sua obra, pelo menos da camerística. Escritos entre 1825 e 1827 (ano de sua morte), correspondem a um período em que Beethoven já estava completamente surdo e vivia só e amargurado, praticamente no ostracismo. Do ponto de vista formal, os quartetos tardios ultrapassam o romantismo e antecipam muitos aspectos da música contemporânea.




Kenneth e Valerie McLeisch (Guia do ouvinte de música clássica, Zahar, 1991) indicam a audição, entre os mais geniais desse período, do Op.132 (especial atenção ao III movimento - molto adagio); do op. 131; e da Grande fuga, op. 133.

Adendo. A HBO produziu, faz alguns anos, um seriado sobre a participação da Companhia Easy de paraquedistas, na II Grande Guerra: Band of Brothers. No episódio 9 -- "Por isso nós lutamos" -- os americanos chegam aos campos de concentração nazistas, e descobrem o maior horror da guerra. Nessa cidade, quatro músicos alemães reúnem-se na rua, em meio à destruição, e tocam um quarteto para cordas de Beethoven.


18 março 2009

igreja e aborto


Recebi de Magenco e reproduzo aqui o artigo de Drauzio Varella, publicado no Caderno Ilustrada da FSP de 14/03/2009.


INCOERÊNCIA CATÓLICA

Os males que a Igreja causa em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos.

AOS COLEGAS de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns. Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina. Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos.

Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus", não é o que pregam?

É uma cosmovisão antagônica à da medicina. Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo.

Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição.

Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma se instalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre os poros da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que um prelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez, ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo?

O arcebispo de Olinda e Recife não cometeu nenhum disparate, agiu em obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398 prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento.

Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos?

Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.

Em nota à imprensa a respeito do episódio, afirmou Gianfranco Grieco, chefe do Conselho do Vaticano para a Família: "A igreja não pode nunca trair sua posição, que é a de defender a vida, da concepção até seu término natural, mesmo diante de um drama humano tão forte, como o da violência contra uma menina".

Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a inteligência humana: defender a vida da concepção até a morte? Não seja descarado, senhor Grieco, as cadeias estão lotadas de bandidos cruéis e de assassinos da pior espécie que contam com a complacência piedosa da instituição à qual o senhor pertence.

Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa.

A esperança de que a instituição um dia adote posturas condizentes com os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar por ela.

Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da maquinária do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes.

Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões cautelosas apenas o presidente da República e o ministro da Saúde.

Os políticos não ousam afrontar a igreja. O poder dos religiosos não é consequência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele deriva da coação exercida sobre os políticos.

Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisas com células-tronco ou o divórcio, não se limita a aconselhar os católicos a segui-la, instituição autoritária que é, mobiliza sua força política desproporcional para impor proibições a todos nós.


11 março 2009

deus no cérebro



Brain scans of participants thinking about God show activation in the parts of the brain where people empathize with others. One such brain region, called the precuneus (the upper green dot), is also associated with imagination, balancing complex tasks and self-consciousness. During the same scan (see far left and far right images) there was also activation in visual processing areas, indicating that humans visualize God using the same brain networks involved when humans visualize themselves. Kapogiannis et al/PNAS

Estudo demonstra que o cérebro humano é ativado quando pensamos em Deus da mesma forma que qualquer outra pessoa. Num estudo com 40 pessoas - religiosas e não religiosas - revelou que uma frase como "eu acredito que Deus está comigo durante o meu dia e me observa" ativa as mesmas regiões que usamos para decifrar emoções e intenções de outras pessoas. Estas regiões seriam, portanto, aquelas responsáveis pela empatia e entendimento mútuo.
A matéria traz também aspectos do aparecimento das religiões e seu papel no processo evolutivo. (veja)

COMENTÁRIO: Uma inferência que o estudo permite fazer é o quanto a figura de Deus é antropomórfica, o que, do ponto de vista psicológico, revela o quanto projetamos de nós mesmos na figura "humanizada" de Deus.

02 março 2009

o tigre branco


A Índia está em alta: no carnaval deste ano, com o samba enredo da Escola de samba da Vila Madalena, de São Paulo; na TV com o infame folhetim Caminho das Índias; no cinema com o multi-premiado Como se tornar um milionário (Slumdog millionaire); e na literatura, com dois títulos publicados no Brasil no ano passado: A feiticeira de Florença e O tigre branco.

O primeiro, de Salman Rushdie, não comentarei, além de dizer que o achei de um realismo mágico rocambolesco e um tanto rocoró, como sugere a capa do livro. Vale mais pela ambientação histórica, e pelos inusitados vínculos ficcionais entre Américo Vespúcio, Maquiavel e o aventureiro florentino que representa a ponte cultural entre Ocidente e Oriente.

O tigre branco,
primeiro romance do jornalista indiano Aravind Adiga, foi ganhador, com justiça, do Man Booker Prize 2008, o prêmio anual para melhor ficção de escritores da comunidade britânica e Irlanda. Aravind Adiga nasceu na Índia, em 1974, e estudou literatura inglesa na Columbia University e em Oxford. Antes de escrever este livro foi repórter da Time Magazine e de outros jornais influentes.


Balram, esse "tigre branco" de Déli, é muito parecido ao Jamal Slumdog de Mumbai, assim como essas cidades, nas disparidades sociais e na miséria extrema. Só não direi que sejam muito parecidas às grandes cidades brasileiras porque a miséria e as desigualdades sociais indianas conseguem ser ainda mais agudas e degradantes que as nossas. Entretanto, a exploração da pobreza e a bandidagem, em todos os níveis da sociedade, estas não são em nada diferentes, em suas várias modalidades, tão bem conhecidas por nós: ação de gangues, exploração de menores, abuso de autoridade e corrupção de governantes.

O título do livro remete a um raro animal da Índia, porque na natureza só nasce um a cada geração. Assim como Balram Halwai, narrador dessa ficção, escrita na forma de uma longa carta endereçada ao primeiro-ministro chinês, que, segundo os noticiários, estaria visitando a Índia para conhecer as bases do desenvolvimento capitalista desse país emergente.

Após ter deixado sua aldeia natal, Balram vê-se servindo de motorista a um casal da burguesia ascendente, numa Déli que é um canteiro de obras, com novos condomínios de luxo e shopping centers. Balram cumpre com seu dever de fiel empregado, ocultando o atropelamento causado pela esposa do patrão, completamente embriagada. Crime pelo qual terá de se responsabilizar mais adiante.



Peguei um balde com água e lavei o carro. Limpei tudo com o maior cuidado e esfreguei bem nos lugares onde havia carne e sangue: tinha um pouco das duas coisas em volta das rodas.

Quando ele desceu, eu estava lavando os pneus pela quarta vez.

-- Bom?

Mostrei-lhe um pedaço de pano verde ensangüentado que tinha ficado preso numa das rodas.

-- Esse tipo de pano é coisa barata, patrão -- disse eu, esfregando o tecido grosseiro entre os dedos. -- é o que se usa para vestir crianças.

-- Não ouvi nenhum barulho, patrão. Nenhum mesmo. E o corpo nem se mexeu.

-- Meu Deus, Balram! O que vamos fazer agora? O que vamos...? -- Deu um tapa na própria testa. -- O que essas crianças ficam fazendo, andando por Déli à uma da manhã, sem ninguém para tomar conta delas?

Quando disse isso, seus olhos se iluminaram.

-- Ah, era uma dessas pessoas.

-- Que moram debaixo das pontes e dos viadutos. Também acho, patrão.

-- Nesse caso, será que alguém vai dar pela falta dela?

-- Acho que não, patrão. Sabe como é essa gente lá da Escuridão: são oito, nove, dez filhos... Às vezes, eles nem sabem como os filhos se chamam. Os pais, mesmo que estejam aqui em Déli, mesmo que saibam onde ela está hoje, não vão à polícia.

Ele pôs a mão no meu ombro, como tinha feito com Pinky Madam horas antes.

Depois, pôs um dedo diante dos lábios.

Fiz que sim com a cabeça.

-- Claro, patrão. Agora, durma bem... Foi uma noite difícil para o senhor e Pinky Madam.

Tirei a túnica de marajá e fui dormir. Estava cansado como o diabo, mas, nos lábios, tinha aquele sorriso largo e satisfeito que surge quando cumprimos o nosso dever para com nosso patrão, mesmo nos momentos mais difíceis.


Balram dirige-se ao primeiro-ministro chinês para lhe dar sugestões sobre o que faz da Índia um próspero país. É como "um ato de empreendedorismo social" que ele define o assassinato por ele cometido e que permite sua ascenção à condição de empresário. A partir daí, dedica-se ao "empreendedorismo comercial".

Embora Adiga afirme que o romance não é uma declaração política, faz um importante alerta que, para quem leu seu livro, é bastante compreensível:


I'm increasingly convinced that the servant-master system, the bed rock of middle-class Indian life, is coming apart: and its unravelling will lead to greater crime and instability. The novel is a portrait of a society that is on the brink of unrest.


Aravind Adiga escreve com ironia, com acidez, e com um humor fino que torna a leitura desse livro um prazer; e um exemplo de boa literatura contemporânea. Além de um retrato realista de uma Índia bipartida, com um pé na Luz e outro na Escuridão, um pé no capitalismo global e outro na miséria medieval.


01 março 2009

as palavras & o tempo


Ainda a propósito de tristeza e luto (post anterior), uma pérola de sensibilidade psicológica de Milton Hatoum, em sua melhor forma:



Eu não conseguia sair de perto de Domingas. Um curumim do cortiço foi entregar um bilhete a Rânia. Escrevi: "Minha mãe acabou de morrer".
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.

Milton Hatoum,
Dois irmãos

28 fevereiro 2009

tristeza ou depressão?


A palavra “tristeza” está em baixa no vocabulário contemporâneo. Afinal, em nossos dias, todos temos de ser felizes (e bonitos, e jovens) o tempo todo. Quando isto não é possível, as pessoas estão preferindo se dizer “depressivas”, pois aí existe o álibi de estarem doentes, e não sentirão a vergonha de terem se deixado abater por algo. Além disto, desde sempre as palavras tristeza e depressão têm sido usadas como sinônimos. Dizer que alguém está deprimido pode se referir a sentimentos de decepção, desesperança, desânimo e, é claro, de tristeza. No entanto, na psiquiatria há uma distinção importante entre elas, embora nem sempre muito facilmente compreensível para os leigos.



No campo médico, a tristeza é apenas um dos sintomas de um conjunto de manifestações que compõem a doença depressiva. Assim, não basta, do ponto de vista psiquiátrico, estar triste para que seja feito um diagnóstico de “depressão”. O sentimento de infelicidade deve ter uma duração determinada, e vir acompanhado de pelo menos certo número de outros sintomas, dentre os quais a falta de prazer e de disposição; pensamentos de doença, morte ou desvalorização; alterações de sono e apetite; e dificuldades de concentração e memória. Além disso, nem sempre o sintoma principal da doença depressiva é a tristeza. Às vezes ela dá lugar à irritabilidade e ao mau humor. Outras vezes, a tristeza fica menos evidente sob uma camada de ansiedade intensa.

Além disso, na sociedade contemporânea vem ocorrendo uma banalização e espetacularização da morte, o que contribui também para o isolamento emocional diante das perdas significativas. A morte é tão ostensiva e frequentemente mostrada em filmes e em noticiários, que paradoxalmente se torna um fenômeno emocionalmente distante de nós. Há ainda um mito social de que a pessoa deve reagir logo a uma perda (o que inclui o falecimento de alguém próximo), tocar a vida adiante, não se deixar abater. Tudo o que impede que o necessário luto seja vivenciado no seu devido tempo e com a necessária tristeza, sem o que a superação saudável se torna muito mais difícil.

Assim como se pode afirmar que a ansiedade e o medo são as reações naturais e esperadas frente ao desconhecido, a tristeza é a resposta normal frente às perdas de toda natureza: materiais, pessoais ou simbólicas. Entretanto, tem havido uma excessiva medicalização da tristeza e de outras características normais do comportamento humano. Esquece-se que a tristeza é fundamental para a elaboração de nossas experiências e para o aprendizado emocional. Se não nos entristecemos diante das perdas, ou dos sofrimentos próprios e alheios, não somos capazes de “elaborar” (resolver emocionalmente) essas experiências. A isto chamamos de “luto”, o período que se segue a qualquer perda importante.

Em psicoterapia, por exemplo, é necessário que o paciente tenha a oportunidade de se entristecer com as frustrações, com os insucessos, ou quando entra em contato com suas próprias limitações e responsabilidades nesses eventos. Ou seja, quando perde algumas idealizações sobre si mesmo. É por isso que uma terapia que somente forneça apoio ou consolo não ajuda ninguém a crescer, embora em algum momento estes recursos sejam fundamentais.

Muitas vezes o sentimento normal e saudável de tristeza é indevidamente tratado como depressão também pelos médicos e pelos serviços de saúde. Contribui para isso a má qualidade dos serviços públicos de saúde em nosso país, levando a atendimentos excessivamente rápidos e à busca de soluções simplificadoras. Se até recentemente o médico, diante de qualquer queixa emocional, entregava ao paciente uma receita de tranqüilizante (os famosos “faixas pretas”), agora a receita é de fluoxetina, o antidepressivo mais difundido, e disponível no sus. É evidente também a falta de uma formação adequada dos médicos para lidar com problemas emocionais dos pacientes, tanto no contexto privado quanto público. Tem havido um gradual progresso neste sentido; uma crescente tomada de consciência dos aspectos emocionais e psiquiátricos dos pacientes pelos futuros médicos, e não apenas pelos que pretendem seguir a carreira de psiquiatras. No entanto, este é um processo lento.

Sempre é bom lembrar que ficar triste nem sempre é estar com uma doença depressiva, e muito menos algo indesejável.



ILUSTRAÇÃO: foto de Marcus Claesson


26 fevereiro 2009

processo de hominização


Descoberta a primeira pegada humana (veja.com 26/2/2009)



Pesquisadores encontraram no Quênia (África) as mais antigas pegadas humanas já descobertas. As marcas têm 1,5 milhão de anos e mostram que os primeiros hominídeos já andavam com a postura ereta e tinham pés anatomicamente semelhantes aos do homem de hoje.

A descoberta, revelada na edição desta semana da revista Science, permite aos cientistas obter informações sobre os tecidos moles e outras estruturas do corpo que normalmente não são preservados no processo de fossilização. A interpretação das pegadas ficou a cargo da equipe internacional do cientista John W.K. Harris, da Universidade Rutgers, nos Estados Unidos.

As pegadas foram atribuídas ao Homo erectus. Esse hominídeo tinha a altura do homem moderno e um cérebro com metade do tamanho dos homens de hoje. Ainda assim, era bastante inteligente e foi o primeiro a dominar o fogo, o que permitiu à espécie manter uma estrutura social complexa e viver agrupados em comunidades.

As marcas foram descobertas em duas camadas sedimentares perto de Ileret, no norte do Quênia. Elas já são consideradas a evidência mais antiga de uma anatomia de pé essencialmente humana, pois pegadas mais antigas, de 3,7 milhões de anos, já foram descobertas, mas têm a anatomia mais semelhante à do macaco.

Nas pegadas do Quênia, os cientistas identificaram que o dedão é paralelo aos demais dedos, o que não acontece nos macacos. As marcas mostram ainda um arco alongado no pé e dedos curtos, marcas comuns associadas à postura bípede ereta.


25 fevereiro 2009

indekx


Os principais jornais e revistas do mundo num só site: AQUI.



22 fevereiro 2009

fritz müller e darwin


Este post foi publicado pelo Tambosi, a propósito de matéria publicada na National Geographic brasileira, e tomo a liberdade de transcrevê-lo.


A edição brasileira da revista National Geographic traz neste mês uma série de matérias sobre os 200 anos de Darwin. Numa delas, lembra - com justiça - um grande colaborador do cientista britânico: Fritz Müller, o naturalista alemão que viveu em Blumenau (SC) e testou pela primeira vez no Brasil a teoria da evolução. (Já me referi a ele aqui, no ano passado).

Ele costumava vestir seus trajes de perambular pelo mato: um facão e uma lata pendurados na cintura, além de um longo cajado. Daí caminhava sem sapato, como gostava, até a praia para capturar caranguejos. Não fazia isso por lazer. Muito menos os animais que encontrava na areia eram levados a sua mulher, Karoline, para preparar o almoço.

Seus propósitos eram outros. O naturalista Fritz Müller era um sujeito com ideias arrojadas, sobretudo para o fim do século 19 no arcaico sul do Brasil, povoado por pioneiros europeus, conforme contextualiza Moacir Werneck de Castro na biografia de Müller, O Sábio e a Floresta. Naquele verão, ele tinha decidido realizar um experimento que colocaria à prova teorias do inglês Charles Robert Darwin, lançadas em livro na Inglaterra menos de dois anos antes. Em A Origem das Espécies, Darwin chegou a assumir que haveria "repugnância natural" para os leitores aceitarem uma das suas teses: a de que uma espécie daria origem a outra distinta. O inglês solicitava no livro o envolvimento de outros naturalistas para que eles estudassem, imparcialmente, os dois lados dessa questão. Müller não pensou duas vezes: encarou como uma oportunidade e resolveu colaborar com Darwin. (Continua).


21 fevereiro 2009

versus Gray - 2


Continuação
deste post, sobre o livro Cachorros de palha, de John Gray


Um dos problemas de Gray é a apropriação muito particular que faz dos conceitos, adaptando-os a seu próprio interesse. Por exemplo, para ele as formigas detêm tecnologia, uma vez que são capazes de cultivar colônias de fungos para servirem de alimento. Parece estranho usar a palavra “tecnologia” dissociada da idéia de “ferramenta”. Esta última implica na utilização de algo como algo diferente. Pode ser um osso que serve para agredir ou matar. Pode ser uma vareta que serve para tirar cupins de dentro de sua colônia e se alimentar.

Podemos aceitar sem problemas que outros animais, especialmente primatas, sejam capazes de fazer uso de ferramentas. O animal começa a se tornar animal humano, entre outras coisas, quando pode usar uma ferramenta para fazer outra: uma linha com a qual constrói um machado unindo uma pedra lascada ao cabo, ou com a qual tece uma rede... Formigas, e outros insetos sociais, podem apresentar comportamentos complexos e mesmo divisão de tarefas, mas não produzem ferramentas ou criam novas tecnologias. Até onde se saiba, há milênios seguem reproduzindo esses mesmos comportamentos instintivamente.

Além da construção de novas ferramentas é preciso lembrar outros traços únicos no ser humano, como a menor especialização dos comportamentos -- e consequente maior capacidade de adaptação a ambientes adversos -- a partir da utilização mais complexa das mãos (o polegar opositor) e da bipestação, assim como a capacidade superior de utilização de linguagem oral, para além da emissão de sinais sonoros.

E lá vamos nós de volta à velha e desgastada dicotomia, neste caso, ainda mais problemática: enquanto o humanismo (no sentido que Gray atribui ao termo) sugere a existência de um abismo intransponível entre nós e os outros animais, “o normal é o sentimento animista de ser parte da natureza, assim como tudo o mais. Por mais débil que se revele hoje, o sentimento de partilhar um destino comum com outras coisas vivas está entranhado na psique humana” (grifo meu). Ou demasiado humanos, ou demasiado animais. Isto que é fundamentalismo!

No item “Contra o fundamentalismo – religioso e científico”, Gray acena inicialmente com alguma possibilidade de concordância entre nós. Ele reconhece que “uma vez passadas, formas de vida tradicionais não podem ser recuperadas”, para desespero, talvez, das tribos alternativas. É verdade também que a ciência proporciona um senso de progresso do qual a vida política e a ética nos privam. Mas nosso acordo termina aí. Em “A irracionalidade da ciência”, Gray avalia a ciência tendo como parâmetro o método científico tradicional, cartesiano e positivista.

Relutantemente, tentei ver na crítica a estes fundamentalismos um ponto de convergência com o autor. Entretanto, sua argumentação segue por caminhos tortuosos até chegar à afirmação de que “a ciência é o lugar onde nos refugiamos da incerteza, pois ela nos promete [...] o milagre de nos livrar de pensar, enquanto as igrejas passaram a ser lugares de proteção e refúgio para as dúvidas”. No wonder I can’t understand him! Ele afirma que a ciência é para os que não querem pensar e que as igrejas são o refúgio das dúvidas. Sempre acreditei que a ciência estivesse alicerçada na capacidade de fazer perguntas, de duviar, portanto, e que a religião na capacidade da fé, em poder crer de olhos fechados. Gray coloca isso tudo de pernas para o alto. Vivemos, o autor e eu, em mundos tão diferentes? (Veja o que Nietzsche afirma sobre os crentes.)



Em favor de seu argumento, Gray sustenta que os primeiros cientistas não estavam livres de superstição, citando o misticismo de Newton e de Kepler, baseado exatamente no fundamentalista anti-científico Feyerabend. Avaliar a ciência atual a partir daquela de seus fundadores é forçar a barra. Seu argumento é de que a ciência é irracional também porque na história da ciência muitos cientistas ignoraram as regras do método científico (novamente, o método científico como o parâmetro de ciência racional Nada mais fundamentalista!).

Enfim, razão versus não razão é outra dicotomia cartesiana à qual Gray se apega para defender seus pontos de vista. Recentemente, Antonio Damásio, em seu ótimo O erro de Descartes, argumentou com brilhantismo que a razão jamais está dissociada da emoção. Antes disso, Edgar Morin já propôs um paradigma para a ciência contemporânea que reconheça a criatividade e a intuição, necessárias a qualquer formulação de hipótese. Segundo ele, a ciência deve ser concebida como um conjunto de empreendimentos complementares (ainda que eventualmente estejam em conflito), no qual estão conjugados o empirismo, o racionalismo, a verificação e imaginação. A ciência precisa ser pensada como uma ciência que se autoproduz, que está condicionada historicamente, e cuja autonomia depende do processo de regeneração permanente e de revisão crítica dos dogmatismos e da hiperespecialização.

O debate que necessita ser travado não é entre ciência e não-ciência, mas entre a ciência tradicional e a ciência contemporânea. Que Gray leia um pouco de Morin. Enquanto isso eu leio, sofregamente, Gray...


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OtO-

Peça de artilharia pesada dos anos 40, nas ruínas do forte da Ilha do Mel, PR. Janeiro de 2009.