02 março 2009

o tigre branco


A Índia está em alta: no carnaval deste ano, com o samba enredo da Escola de samba da Vila Madalena, de São Paulo; na TV com o infame folhetim Caminho das Índias; no cinema com o multi-premiado Como se tornar um milionário (Slumdog millionaire); e na literatura, com dois títulos publicados no Brasil no ano passado: A feiticeira de Florença e O tigre branco.

O primeiro, de Salman Rushdie, não comentarei, além de dizer que o achei de um realismo mágico rocambolesco e um tanto rocoró, como sugere a capa do livro. Vale mais pela ambientação histórica, e pelos inusitados vínculos ficcionais entre Américo Vespúcio, Maquiavel e o aventureiro florentino que representa a ponte cultural entre Ocidente e Oriente.

O tigre branco,
primeiro romance do jornalista indiano Aravind Adiga, foi ganhador, com justiça, do Man Booker Prize 2008, o prêmio anual para melhor ficção de escritores da comunidade britânica e Irlanda. Aravind Adiga nasceu na Índia, em 1974, e estudou literatura inglesa na Columbia University e em Oxford. Antes de escrever este livro foi repórter da Time Magazine e de outros jornais influentes.


Balram, esse "tigre branco" de Déli, é muito parecido ao Jamal Slumdog de Mumbai, assim como essas cidades, nas disparidades sociais e na miséria extrema. Só não direi que sejam muito parecidas às grandes cidades brasileiras porque a miséria e as desigualdades sociais indianas conseguem ser ainda mais agudas e degradantes que as nossas. Entretanto, a exploração da pobreza e a bandidagem, em todos os níveis da sociedade, estas não são em nada diferentes, em suas várias modalidades, tão bem conhecidas por nós: ação de gangues, exploração de menores, abuso de autoridade e corrupção de governantes.

O título do livro remete a um raro animal da Índia, porque na natureza só nasce um a cada geração. Assim como Balram Halwai, narrador dessa ficção, escrita na forma de uma longa carta endereçada ao primeiro-ministro chinês, que, segundo os noticiários, estaria visitando a Índia para conhecer as bases do desenvolvimento capitalista desse país emergente.

Após ter deixado sua aldeia natal, Balram vê-se servindo de motorista a um casal da burguesia ascendente, numa Déli que é um canteiro de obras, com novos condomínios de luxo e shopping centers. Balram cumpre com seu dever de fiel empregado, ocultando o atropelamento causado pela esposa do patrão, completamente embriagada. Crime pelo qual terá de se responsabilizar mais adiante.



Peguei um balde com água e lavei o carro. Limpei tudo com o maior cuidado e esfreguei bem nos lugares onde havia carne e sangue: tinha um pouco das duas coisas em volta das rodas.

Quando ele desceu, eu estava lavando os pneus pela quarta vez.

-- Bom?

Mostrei-lhe um pedaço de pano verde ensangüentado que tinha ficado preso numa das rodas.

-- Esse tipo de pano é coisa barata, patrão -- disse eu, esfregando o tecido grosseiro entre os dedos. -- é o que se usa para vestir crianças.

-- Não ouvi nenhum barulho, patrão. Nenhum mesmo. E o corpo nem se mexeu.

-- Meu Deus, Balram! O que vamos fazer agora? O que vamos...? -- Deu um tapa na própria testa. -- O que essas crianças ficam fazendo, andando por Déli à uma da manhã, sem ninguém para tomar conta delas?

Quando disse isso, seus olhos se iluminaram.

-- Ah, era uma dessas pessoas.

-- Que moram debaixo das pontes e dos viadutos. Também acho, patrão.

-- Nesse caso, será que alguém vai dar pela falta dela?

-- Acho que não, patrão. Sabe como é essa gente lá da Escuridão: são oito, nove, dez filhos... Às vezes, eles nem sabem como os filhos se chamam. Os pais, mesmo que estejam aqui em Déli, mesmo que saibam onde ela está hoje, não vão à polícia.

Ele pôs a mão no meu ombro, como tinha feito com Pinky Madam horas antes.

Depois, pôs um dedo diante dos lábios.

Fiz que sim com a cabeça.

-- Claro, patrão. Agora, durma bem... Foi uma noite difícil para o senhor e Pinky Madam.

Tirei a túnica de marajá e fui dormir. Estava cansado como o diabo, mas, nos lábios, tinha aquele sorriso largo e satisfeito que surge quando cumprimos o nosso dever para com nosso patrão, mesmo nos momentos mais difíceis.


Balram dirige-se ao primeiro-ministro chinês para lhe dar sugestões sobre o que faz da Índia um próspero país. É como "um ato de empreendedorismo social" que ele define o assassinato por ele cometido e que permite sua ascenção à condição de empresário. A partir daí, dedica-se ao "empreendedorismo comercial".

Embora Adiga afirme que o romance não é uma declaração política, faz um importante alerta que, para quem leu seu livro, é bastante compreensível:


I'm increasingly convinced that the servant-master system, the bed rock of middle-class Indian life, is coming apart: and its unravelling will lead to greater crime and instability. The novel is a portrait of a society that is on the brink of unrest.


Aravind Adiga escreve com ironia, com acidez, e com um humor fino que torna a leitura desse livro um prazer; e um exemplo de boa literatura contemporânea. Além de um retrato realista de uma Índia bipartida, com um pé na Luz e outro na Escuridão, um pé no capitalismo global e outro na miséria medieval.


2 comentários:

LesPaul disse...

Desculpe usar este post para dar um recado: está nas bancas a revista Entrelivros CLÁSSICO sobre o Jorge Luiz Borges. O Texto sobre a Divina Comédia e Dante é do meu velho. O livro Borges, Um Giróvago como prometido, continua à disposição, só temos que marcar uma maneira de te enviar. Abraço,

LesPaul

Ercy Soar disse...

LesPaul,
valeu a dica!
Se puder, me passe um email que entrarei em contato pra combinarmos.
Obrigado e abraço.