27 setembro 2010

perdas & ganhos

Estou cansada de tantos acontecimentos em tão pouco tempo; tantos ganhos e tantas perdas... Ainda espero fazer uma vida pra mim... Como? Não sei!
Lúcia, 53 anos, durante sessão de terapia.

Nos capítulos anteriores tratei de vários aspectos da vida no mundo de hoje, na sociedade globalizada, tecnificada, interconectada e em permanente transformação. As múltiplas facetas dessa sociedade tornam impossível qualquer apreciação ou julgamento simplista a respeito dos seus rumos e das consequências futuras. É muito difícil dizer se a sociedade é “melhor” ou “pior” do que as gerações que nos antecederam. Mais difícil ainda dizer se somos melhores ou piores que nossos antepassados. Pelo menos, sem que se deixe claro de que aspectos estamos falando.
Prefiro pensar a sociedade contemporânea em termos de ganhos e perdas, das diferenças em relação ao passado, e dos dilemas que ela nos apresenta. Neste capítulo, faço um resumo da segunda parte do livro, complementando alguns temas e sistematizando os vários desafios à identidade na forma de quatro classes de dilemas fundamentais vividos pelos viajantes dessa grande nave Terra.

1. IDENTIDADE LOCAL versus IDENTIDADE GLOBAL

A globalização traz consigo perdas, corrói a segurança dos saberes tradicionais, e faz com que se dispersem, no caldeirão cultural globalizado, alguns referenciais da identidade cultural local. Mas a globalização também amplia os horizontes existenciais e o conhecimento do mundo. Além disso, ela aproxima pessoas e rompe com preconceitos.
Em seu livro Cultura global e identidade individual, Gordon Mathews mostra como o conceito de cultura vem se tornando cada vez mais problemático, a tal ponto que a noção de “cultura nacional” está sendo colocada em xeque nas ciências sociais. Já não pertencemos mais a uma cultura específica, mas podemos escolher (até onde de fato se trata de uma escolha) aspectos de nossas vidas naquilo que ele chama de “supermercado cultural global”.
Vivendo em Florianópolis, Fernando percebe esse fenômeno e relata um pouco de sua experiência de estar imerso em processos globais de interdependência e de influências mútuas:

Como amante da música, pude conhecer muito mais de música depois da abertura comercial brasileira, em 1990, quando passamos a ter acesso a CD’S importados. Não só isso, na filosofia também. O Budismo foi uma delas. Uma das coisas que me ajudou na época da minha crise foi, através do Yoga, ter descoberto um pouco do Budismo. Não se falava em Budismo aqui no Brasil, até pouco tempo atrás.

Os conflitos entre cultura local e o supermercado cultural global nada mais são, afinal, do que manifestações de outros dilemas históricos da humanidade, que podem ser formulados em termos como tribalismo versus nacionalismo, nacionalismo versus globalismo, e Estado versus mercado. A localidade não se opõe à globalidade, mas se confunde com ela, surge com mais força como um movimento de resistência.
Muitos cientistas sociais apontam o agravamento de fundamentalismos religiosos e as lutas nacionalistas e separatistas como expressão da resistência às influências globalizantes nas esferas econômica, política e cultural. Para o sujeito isolado, o indivíduo, fica o desafio de lidar com o dilema entre ser fiel às suas “raízes” e ser antenado com o mundo; entre ser autêntico e fazer parte de grupos mais amplos, o que já se confunde com o próximo dilema.




2. PERTENCIMENTO versus AUTENTICIDADE

Andar no moda e correr o risco de ser um maria-vai-com-as-outras, ou se vestir com autenticidade e ser visto como um estranho-no-ninho? Ouvir as músicas que a maioria das pessoas curtem, ou gostar de música erudita e não ter com quem trocar idéias a respeito? Assistir ao Big Brother Brasil e participar das conversas de cafezinho, ou se recusar a consumir um produto cultural de qualidade incerta, e ficar por fora do papo?... Os exemplos são virtualmente infinitos, mas o dilema é o mesmo: o quanto queremos, podemos, ou somos impelidos a nos identificar com as tendências dominantes, e o quanto nos mantemos “fiéis a nós mesmos”.
Estamos no campo do dilema entre ser único e fazer parte. Já afirmei, na primeira parte do livro, que toda identidade pessoal é também uma identidade grupal. Aliás, e disto que, em última instância, trata este livro. Meus entrevistados, principalmente os mais jovens e com formação universitária, fizeram-me ver que tais dilemas são sentidos também por eles. Bruno percebe que não há como evitar a globalização e seus efeitos, uma vez que “fazer parte dessa sociedade é inevitável”, e que o fundamental ter crítica a esse respeito e “saber como viver nesta sociedade”. Fernando afirma ser necessário “saber monitorar as influências”. E volto aqui à frase de Ana: “Ninguém pode não ser simplesmente nada”, no sentido de que é preciso fazer parte de algum grupo de identificação.
O livro de Gordon Mathews trata de pensar se existe, ou existiu alguma vez, algo que possa ser chamado de “lar cultural”. Em outras palavras, se existe uma cultura para chamar de sua... Sua investigação revela que, uma vez dentro do supermercado cultural, não há como retornar a esse suposto lar. Quer aqueles que continuam a buscá-lo, quer aqueles que querem dele fugir, o que podem fazer é tentar administrar essa inevitável circunstância, ao mesmo tempo em que lutam para obter reconhecimento e legitimidade para suas opções. Por menos cosmopolita que o indivíduo seja, uma vez tendo acesso aos veículos de informação e aos meios de transporte, estará inevitavelmente em conexão com o mundo.
Uma faceta secundária do dilema pertencimento versus autenticidade é aquele que se estabelece entre segurança e autonomia, e aqui voltamos ao papel da família. Em outras palavras, é o dilema entre o nó e o ninho. Fazemos parte de uma geração que assiste e usufrui a perda do poder normativo tradicional das famílias, enquanto florescem as novas modalidades de relacionamentos emocionais estáveis, a partir de uma perspectiva de maior igualitarismo e respeito mútuo nas relações entre homens e mulheres, e entre pais e filhos.
Mas, será possível permanecermos no ninho sem estarmos atados? Não há dúvidas de que as novas formas de contratos matrimoniais e de sexualidade agregam liberdade e mobilidade à vida das pessoas. Mas talvez haja um preço a ser pago: um número maior de pessoas solitárias, mais idosos vivendo sozinhos ou em abrigos, e famílias menores e menos agregadas.

3. CONHECIMENTO versus DÚVIDA

Vivemos na era da informação e dos excessos. Se por um lado temos acesso crescente à informação, temos, na mesma medida, mais incertezas. O que os mitos, a religião e a tradição nos ensinavam, e que a família e a escola reforçavam, de pouco nos vale hoje. A cada passo do caminho, temos de pensar para que lado seguir.
As pessoas, especialmente aquelas que vivem nos grandes centros urbanos e que navegam a Internet, estão expostas a uma grande quantidade de modelos comportamentais e culturas alternativas. Com isso, aprende-se mais sobre o que se pode esperar. Trata-se de uma socialização secundária, que se segue à primária, aquela que se dá na convivência da criança com a família e a escola, que ocorre mesmo durante a vida adulta. Kenneth Gergen, em The saturated self, fornece um repertório significativo de aprendizados que um cidadão americano pode ter vivendo em qualquer grande cidade daquele país.

Durante uma hora numa rua de cidade somos informados dos estilos de vestir de negros, brancos, classe alta, classe baixa, e mais. Podemos aprender as maneiras dos executivos japoneses, camelôs, sikhs, Hare Krishnas, ou tocadores de flauta do Chile. Vemos como relações são mantidas entre mães e filhas, executivos, amigos adolescentes, e trabalhadores da construção civil. Uma hora num escritório de negócios pode nos expor aos pontos de vista de um empresário texano de petróleo, dum advogado de Chicago, e dum ativista gay de São Francisco. Comentadores de rádio compartilham idéias sobre boxe, poluição, e abuso infantil. [...] Via televisão, uma miríade de figuras é introduzida em nossos lares, as quais de outra forma jamais entrariam. Milhões de pessoas assistem TV, enquanto convidados de talk-shows – assassinos, estupradores, prisioneiras, abusadores de crianças, membros da KKK [Ku-Klux-Klan], pacientes psiquiátricos, e outros geralmente desacreditados – tentam fazer suas vidas inteligíveis. Há poucas crianças de seis anos de idade que não possam fazer pelo menos uma avaliação rudimentar sobre a vida nas vilas africanas, sobre as preocupações dos pais que se divorciam, ou sobre o problema das drogas nos guetos. A cada hora nosso depósito de conhecimento social se expande em amplitude e sofisticação.

Por outro lado, afirma o mesmo autor, o efeito colateral desse fenômeno é o que ele chama de “expansão da inadequação”, ou seja, um crescente auto-questionamento sobre os próprios parâmetros e crenças. É uma idéia muito próxima ao conceito de reflexividade moderna. Seja qual for o nome empregado, trata-se de uma angústia frente ao universo de possibilidades e de escolhas com que se defronta esse Homo urbanus em sua eterna luta por sobrevivência.
Quando temos a sensação de que tudo vale, sobrevêm a angústia de que nada é seguramente mais válido do que o resto das opções. E isto vale para os cuidados para com o corpo, a educação dos filhos, as práticas amorosas e sexuais, as escolhas morais. Sobre este mesmo tema, vale a pena lembrar os versos da canção “Hermana Duda”, do extraordinário compositor e cantor uruguaio Jorge Drexler, a quem considero um dos grandes intérpretes do nosso tempo na esfera da música popular.

No tengo a quien rezarle pidiendo luz,
Ando tanteando el espacio a ciegas.
No me malinterpreten,
No estoy quejándome.
Soy jardinero de mis dilemas.
Hermana duda,
Pasarán los años,
Cambiarán las modas,
Vendrán otras guerras,
Perderán los mismos
Y ojalá que tu
Sigas teniéndome a tiro.

No momento em que escrevo, na Argentina é aprovada a união civil entre homossexuais, e no Brasil uma lei proíbe que se use qualquer castigo físico nos filhos, mesmo as chamadas “palmadas pedagógicas”. As leis, como sempre, correm atrás dos costumes. Para o bem ou para o mal, as leis vão refletindo e normatizando as realidades criadas e recriadas incessantemente pela sociedade.
Ana, apesar de sua juventude, é capaz de descrever com muita acuidade a complexidade das mudanças sociais no que diz respeito à educação dos filhos e suas consequências futuras:

Com todas as mudanças boas que vieram, vieram dois lados. Fizeram essa revolução: pais não podem mais bater nos filhos. Está tudo bem, mas uns levaram isso muito bem e outros deixaram as crianças completamente soltas. Mas o ponto aonde eu quero chegar é o seguinte: essas crianças, a gente está cuidando delas agora, mas essa evolução tem dois lados: tem a parte muito boa, e para onde é que a gente vai, na parte ruim, sabe?!

No vácuo gerado pela dúvida surgem os especialistas, os consultores, a legião de profissionais personal. Saem de cena os padres, entram em cena os terapeutas.

4. INDIVIDUALIDADE versus INDIVIDUALISMO

Podemos ser autênticos sem sermos indiferentes aos outros? Até onde nossas liberdades de escolha, tão ampliadas em relação às gerações que nos precederam, podem se transformar num individualismo desenfreado? Estaria um suposto narcisismo consumista levando ao desmoronamento dos alicerces morais da sociedade? O dilema moral entre individualidade e individualismo abriga uma série de outros componentes, como as possíveis – mas não necessárias – contradições entre amor-próprio e altruísmo, auto-preservação e solidariedade social, oportunismo e honestidade.
Há, de fato, uma percepção muito difundida de que o ser humano contemporâneo sofre de um empobrecimento moral generalizado, e que esse empobrecimento é indissociável das relações econômicas vigentes globalmente, ou seja, do capitalismo. O indivíduo narcisista seria guiado por uma lógica de auto-preservação e de sobrevivência psíquica, sendo pouco confiável e portador de sistemas de valores geralmente corruptíveis. Por exemplo, é assim que Heloísa refere-se ao tema da mercantilização das relações:

Eu fui criada num ambiente em que vigoravam alguns princípios que foram muito importantes para eu desvendar o mundo. Quando eu me vi frente ao mundo, eu vi que muitas coisas eram extremamente diferentes, principalmente no que diz respeito aos valores, principalmente hoje, quando tudo virou mercadoria. Isto me dá muita angústia. De repente eu vejo que as coisas estão muito descartáveis e eu sei a dimensão que isso tem. As pessoas falam e “desfalam”, e eu persigo tanto a coerência... Acho que são conflitos que me geram tanto a sensação que eu sou inadequada, como que talvez o problema esteja lá fora. Acho que esse mundo no qual a gente vive está doente. Mas acho que a responsabilidade também é minha. Enfim, acho que o problema é de ambos, do mundo e meu.

Heloísa tem razão em suas preocupações, enquanto, felizmente, ela própria é uma evidência de que ainda há quem se preocupe, quem se responsabilize, e quem acredite que pode fazer uma diferença. E isto vale para a mercantilização e a competição, tanto quanto para o cuidado com o planeta, o respeito para com a diversidade humana, e a construção de relacionamentos mais honestos.

Referências
Bauman, Z (1999) Globalização: as consequencias humanas. Rio de Janeiro: Zahar.
Gergen, KJ (1991) The saturated self. New York: Basic Books.
Giddens, A (2002) Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Zahar
Hall, S (2000) A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A.
Mathews, G (2002) Cultura global e identidade individual. Bauru: EDUSC.

[Capítulo inédito de Os outros que somos]

21 setembro 2010

drogas para todos os gostos


Existe na sociedade contemporânea um padrão “aditivo”, ou seja, que induz à dependência? Pode-se falar em dependência a outras “drogas” que não as químicas, como jogo, comida e sexo, nos mesmos termos em que pensamos as dependências químicas? A comercialização de quais drogas deve ser criminalizada, e de quais deve ser liberada? E o consumo? Qual o peso relativo dos fatores sociais e dos individuais nas dependências? Existe uma relação entre transtornos narcísicos e o uso abusivo de drogas? Como se articulam os quadros de abuso de substâncias e os demais transtornos mentais?
O problema das drogas coloca a sociedade diante de muitas questões, a maior parte delas sem respostas definitivas. Em seu livro Drogas, por que as pessoas usam?, Francisco Baptista não apenas responde a algumas delas como traça um amplo painel sobre as drogas e seu consumo no Brasil. O autor não faz distinção entre as substâncias psicoativas lícitas ou ilícitas, desde que sejam capazes de produzir dependência e causar danos significativos à saúde. Assim, inclui entre as drogas discutidas a cafeína, o tabaco, o álcool, os tranqüilizantes e os remédios psicoestimulantes, usados de maneira indiscriminada no Brasil, principalmente como inibidores de apetite.
O abuso de drogas não pode ser explicado através de fórmulas esquemáticas ou causalidades lineares. Não há culpados isolados nem causas únicas. Como tudo que se passa no campo da conduta humana, existem múltiplos fatores envolvidos. No entanto, não se pode fechar os olhos para o fato de que a sociedade contemporânea vem se caracterizando por níveis inéditos de produção, venda e consumo de substâncias psicoativas, e que as pessoas, principalmente os jovens, lançam-se numa corrida desenfreada em busca de novas sensações, de prazeres imediatos, de estados alterados de mente, como numa frenética fuga da realidade.
O narcisismo cultural da contemporaneidade está na base de uma mentalidade consumista, de uma insatisfação permanente, e de um vazio existencial que busca alívio no consumo de substâncias que, num primeiro momento, podem trazer sensação de prazer, mas que cobram um alto e crescente preço pela manutenção deste mesmo prazer. Com o tempo, pouco ou nada dele resta, senão a necessidade compulsiva de aliviar a falta da própria droga. Entre aqueles que buscam ajuda psiquiátrica e psicoterápica, não é raro observar casos de uso e abuso de drogas como uma tentativa desesperada de preencher o vazio existencial, aliviar a insegurança ontológica, ou amenizar sintomas de outros transtornos mentais associados.
Os sintomas ansiosos que levaram Fernando a me procurar inicialmente estavam associados a um uso crescente de maconha. Ele buscava alívio para suas angústias na maconha, que, por sua vez, acabou por desencadear várias crises de ansiedade. Na medida em que se tratou, com remédios e com terapia, diminui significativamente o consumo, tendo passado longos períodos em abstinência.
Outro paciente, um jovem de 19 anos que apresentava problemas de conduta e uso de maconha, cocaína e ecstasy, quando iniciou o tratamento revelou vários sintomas sugestivos de psicose. Ele vinha usando essas drogas desde há anos, e tinha uma história familiar importante de pessoas com esquizofrenia e transtorno bipolar de humor. Já existem muitas evidências científicas de que a exposição precoce às drogas, mesmo que exclusivamente a maconha, aumenta em praticamente dez vezes o risco de desenvolver psicoses. Felizmente, este jovem tem conseguido manter-se afastado das drogas, ciente de que disto depende sua saúde mental.



Há hoje uma larga produção artística, principalmente nas artes cênicas, sobre este tema. Poucos filmes, entretanto, impressionaram-me tanto quanto “Réquiem para um Sonho”, do diretor novaiorquino Darren Aronofsky. São histórias paralelas de quatro personagens. Enquanto um jovem, e sua namorada, vão se enredando nas teias da dependência à heroína, sua mãe, abandonada em casa, torna-se dependente de substâncias prescritas por médicos para emagrecer. Durante o dia toma anfetaminas e à noite tranqüilizantes, para dormir. Entre uns e outros, consome de forma igualmente compulsiva os programas populares da TV americana, até ver-se dentro deles, conduzida por delírios e alucinações resultantes do abuso das substâncias. No filme evidencia o problema da dependência a substâncias lícitas, como os remédios, e a outras formas de anestesiamento mental, como pode ser a televisão.
O Brasil, segundo noticiado recentemente, já é um dos países do mundo onde mais se consomem os tranqüilizantes, prescritos muitas vezes de forma irresponsável pelos próprios médicos. O medicamento clonazepam, mais conhecido pelo nome comercial Rivotril®, já é o segundo remédio mais vendido nas farmácias do Brasil. É uma situação grave, levando-se em conta que só pode ser comercializado mediante receita médica. Este é um potente tranqüilizante que, quando usado corretamente, pode ser um valioso instrumento no tratamento de transtornos psiquiátricos. Entretanto, sua prescrição continuada e indiscriminada pode trazer efeitos indesejáveis a curto e longo prazos, entre os quais uma importante dependência química.
Vivemos numa sociedade que é indutora de dependências de toda natureza, que incluem o jogo, os videogames, a Internet, a televisão, passando pelo sexo e pela comida, até uma gama enorme de substâncias que atuam no cérebro. A mídia exerce um papel importante nesse problema, possivelmente muito mais como indutora do uso do que como veículo de educação e prevenção. Ainda não existem estudos definitivos quanto à eficácia das campanhas contra as drogas. E há pelo menos um estudo mostrando que as leis que restringem os locais onde se pode fumar são mais eficazes entre os adolescentes do que aquelas fotos horríveis estampadas nos maços de cigarro.
Ainda assim, não se pode negar de que o conjunto de ações, que abarcam os campos da legislação, tributação, educação e repressão, têm contribuído decisivamente para um decréscimo do consumo de cigarros no Brasil. Uma pesquisa recente do INCA (Instituto Nacional do Câncer) mostrou que, em 1989, 33% dos brasileiros maiores de 18 anos fumavam. Hoje essa proporção é de 18%, tendo ocorrido uma queda de 45%.
Enquanto não existem divergências sobre a necessidade de severo combate ao tráfico de drogas, o mesmo não se pode dizer quanto à maneira de lidar com o consumo. Francisco Baptista é enfático ao criticar a criminalização do consumo, atitude que em sua opinião só reforça a crença de que o usuário é malandro, vagabundo, ou pessoa sem caráter. Esta perspectiva na maioria das vezes só acarreta danos ao próprio usuário, além de significar uma restrição à liberdade individual. O tema da descriminação do consumo, de fato, é bastante sensível e polêmico. As experiências de outros países têm mostrado resultados contraditórios e inconclusivos.
A atual epidemia de crack, que tem ganhado – ainda que tardiamente – algum espaço nos noticiários, impõe a busca de soluções urgentes. Tem-se assistido inclusive em telejornais o desespero de famílias em busca de ajuda para jovens seriamente afetados pelo abuso dessa substância destrutiva. A sociedade organizada e o poder público precisam oferecer respostas urgentes ao problema. O governo já estaria dando um passo importante se destinasse mais verbas para o setor da saúde mental, que sofre de muitas deficiências nesta e em outras áreas. São necessários programas específicos de tratamento no Sistema Único de Saúde, a criação de clínicas especializadas e a ampliação no número de leitos psiquiátricos em geral, e para o tratamento dos dependentes químicos.

Ilustração: cena de Réquiem para um sonho.

05 setembro 2010

sacanagens de gilberto freyre


Trechos do livro recém-publicado de Gilberto Freyre, De menino a homem: de mais de trinta e de quarenta, de sessenta e mais anos. Livro de memórias escrito na forma de um diário. O velho Freyre mostra aqui a mesma picardia que escandalizou os mais puristas em seus relatos das sacanagens que rolavam entre a casa-grande e a senzala. (mais)

Longe de ser um Vieira no meu domínio sobre a língua portuguesa abrasileirada, quando, cada noite, converso com Deus ou com Cristo ou com Maria, como se conversasse com amigos íntimos, as palavras que uso são as mais tropicais, as mais telúricas, as mais ecologicamente brasileiras. Não que me repugne o latim, de vogais as mais doces de Igreja e que aprendi com Meu Pai. [...]
Quando, conversando com Deus, abordo assuntos sexuais, que palavras uso para designar fatos dessa espécie? Só as eruditas? Só as elegantes? Só as cerimoniosas?
Devo dizer que não. Por vezes decido que Deus prefere que, como íntimo, seu amigo, seu confidente, os termos relativos a coisas de sexo sejam os cotidianos e até, dentre os cotidianos, os mais crus. Caralho, por exemplo. Não há sinônimo da palavra "caralho" que diga o que diz, pura e cruamente, "caralho".

04 setembro 2010

a vida é atroz

A vida é atroz, nós o sabemos. Mas precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males, fracassos, incúria e erros. As catástrofes e as ruínas virão; a desordem triunfará; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltará a reinar. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade e justiça recuperarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.
Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano.