Após muito ouvir falar de Cachorros de palha, um best seller do filósofo inglês John Gray, decidi finalmente lê-lo, fisgado pelo instigante subtítulo do livro: “reflexões sobre humanos e outros animais”. Animalidade versus humanidade é um debate antigo, moderno, contemporâneo, permanente e presente. E mais: a expressão "outros animais" vem acompanha da de um saco de interpretações disponíveis, ao gosto de cada freguês, o que pode tornar a conversa ainda mais interessante
O livro inicia-se assim:
“Atualmente, a maior parte das pessoas pensa que pertence a uma espécie que pode ser senhora de seu destino”.
Em princípio, estamos de acordo. Desde Darwin, como o próprio Gray afirmará mais adiante, sabemos que somos animais determinados fortemente por nossa herança evolutiva. E, mesmo fora desse campo, não são poucos os pensadores que vêm demolindo os pilares da crença moderna na racionalidade como o elemento supremo do desenvolvimento humano, passando por Schopenhauer, Nietzsche e Freud. Sigamos, então, com John Gray, na sequencia da primeira frase:
“Isso é fé, não ciência. Não falamos de um tempo em que as baleias ou os gorilas serão senhores de seus destinos. Por que então os humanos?”
Fim do primeiro parágrafo, e já temos o bastante para nos atracarmos. É que, a seguir, o autor comete uma brutal simplificação ao dizer que, segundo Darwin,
"as espécies são apenas aglomerados de genes interagindo aleatoriamente uns com os outros e com seus ambientes em permanente mudança. Espécies não podem controlar seus destinos”.
O ser humano - nos informa - não pode controlar o seu destino pois é uma espécie animal, e, em assim sendo, não passa de um aglomerado de genes! Os lógicos chamam isso de "falácia". Tratar humanos e outros animais como se nenhuma diferença existisse (até porque existem entre cada espécie) é uma cabeça de cobra que come seu próprio rabo, fazendo os extremos se tocarem. É uma visão especular da afirmação de que "humanos" e "animais" estão definitivamente separados em âmbitos ontológicos diversos, e que, portanto, devem ser tratados como coisas totalmente distintas.
A lógica cartesiana que insiste em não calar. E, se você não compartilha uma perspectiva dicotômica de mundo, como fica? Então não há encontro possível entre o homem e os "outros animais"? Onde buscar a imprecisa fronteira entre essas matérias irreconciliávies - a matéria pensante (cultura) e a materia extensa (natureza). Toda a linha de raciocínio assenta-se na dicotomia rasteira entre animalidade e humanidade, como se a solução do dilema necessariamente passasse pela eliminação de um dos termos (assim opera a lógica linear).
É claro que somos “como os outros animais” naquilo que mais nos foge à volição e à consciência (ou seja, a maior parte de nós). Mas não somos apenas isso. Não podemos ser comparados a baleias, embora estejamos, sim, muito próximos aos gorilas. A propósito, estudos mostram que um chimpanzé (que é, de fato, o nosso parente mais próximo) adulto, pode ter uma inteligência comparável a de uma criança de até três anos de idade. Temos, portanto, muitos “anos de idade” a nos separar dos chimpanzés, que estão praticamente juntos conosco no topo da escala evolutiva. Compartilhamos com nosso parente pelo menos 97% do genoma. Se o genoma fosse, por si só determinante, então seríamos 97% parecidos... (Tantos anos de idade, e tão poucos genes de diferença. Os 3% devem ser especiais!)
Tudo o que aqui relato se passa nas duas primeiras páginas do livro, na primeira seção do primeiro capítulo, intitulada problematicamente de “Ciencia versus Humanismo”. Em duas páginas, John Gray antecipa uma contraposição entre humanistas e os darwinistas esclarecidos, entre os quais se inclui. Uma oposição derivada de sua muito particular interpretação do "humanismo": “Os humanistas insistem em que, usando nosso conhecimento, podemos controlar nosso ambiente e florescer como nunca”.
O progresso, nessa versão do humanismo, seria um sucedâneo secular do cristianismo. Gray insiste na fórmula humanismo = religiosidade. Ora, o humanismo iluminista fundamentou-se na forte crença de que a racionalidade e a ciência poderiam dar conta de todos os problemas humanos e guiar-nos rumo ao horizonte radiante do progresso (tal como nos painés ufanistas da época do realismo socialista) e nao há dúvidas de que existe um tanto de "religiosidade" nessa crença, de cristianismo sublimado. Entretanto, mesmo para esse humanismo, racionalidade e ciência andam juntas, e ambos são caminhos para a verdade. O Iluminismo foi fruto das reações deflagradas contra os dogmas religiosos. É essencialmente anti-clerical, ou, pelo menos, contrário ao catolicismo dos rebanhos de pobres de espírito. Estão no centro do humanismo a busca do conhecimento e o aprendizado da liberdade, para além dos dogmas religiosos. Se Gray falasse de uma oposição humanismo versus teologismo, até faria sentido, mas não versus a ciência.
Para confundir, entretanto, ele critica o humanismo, tal como o concebeu, a partir otimismo extremado de um darwinista do calibre de Edward Wilson, que teria afirmado: “como um deus, a humanidade estará na posição de assumir o controle de seu destino” (pelo menos é assim que é citado por Gray). É ingênuo, não há dúvidas, pensar que o controle racional determina o futuro do indivíduo – e aqui podemos recorrer a Freud –, tanto quanto o futuro da humanidade – e aqui o próprio Darwin se encarrega de colocar por terra nosso auto-engano da superioridade humana a partir da unção divina, na melhor tradição judaico-cristã. Além de tudo, já sabemos que o acaso é o grande senhor do nosso destino (idéia que tem amparo não apenas na filosofia, como também nas ciências físicas: termodinâmica, entropia, etc.).
Somos bem mais que aglomerados de genes. Ainda outro dia revi o filme de Kubrick, 2001 – Uma odisséia no espaço. Não foi pequeno o percurso daquele osso que sobe aos céus pra se transformar numa estação espacial (que já existe em nossos dias). Entretanto, como quer o heideggeriano Gray, "a humanidade não dominará jamais a tecnologia", que nada mais é do que "um evento que calhou acontecer no mundo".
Todos os eventos do mundo calham de acontecer no mundo, meu caro Gray. Mas isto é uma tautologia vazia. Ele prossegue afirmando que foram as tecnologias que permitiram que a humanidade perpretasse tantos crimes, e que sem estradas de ferro, telégrafo e gás venenoso não teria havido o Holocausto. Seguramente não teria sido do jeito que foi, mas o gênio humano sempre se renova, se inova e se repete. Na falta de outra coisa, poderia ter sido com fogueiras humanas, maquinas supliciantes ou simples enforcamento.
A humanidade não precisa de novas tecnologia para cometer barbaridades, embora as utilize também para isto. Ela precisa das tecnologias para manter e expandir as fronteiras da própria tecnologia, em favor da sobrevivência da espécie. As tecnologias causam problemas e soluções. Nao são boas ou más a priori. E para não deixar de lado os grandes feitos tecnológicos da humanidade, muito antes de termos criado a bomba atômica, ido ao espaço, realizado transplantes de órgãos e descoberto o genoma humano, fomos capazes até de escrever livros e, mais importante ainda, de torná-los acessíveis através da imprensa. Livros que fazem alguma diferença entre nós e os outros animais. Livros como Cachorros de palha, que devem ser cautelosamente lidos.
Vou seguir lendo, por teimosia e curiosidade, e voltarei a postar a respeito. Especialmente se John Gray for me convencendo de que me precipitei, ou, mais ainda, de que ele está com a razão! Ou então que outro leitor encarregue-se de fazer isso. As inscrições estão abertas.
7 comentários:
Por que "Sem estradas de ferro, telégrafo e gás venenoso não teria havido o Holocausto"? Não é "Sem estradas de ferro, telégrafo e gás venenoso não teria havido a 2a. Guerra Mundial"? Fica parecendo que só judeus morreram na 2ª Guerra, que o termo holocausto sintetiza e esgota o horror daquele conflito. A União Soviética perdeu, parece, 22 milhões de pessoas. E Hiroshima? e Nagasaki? E Dresden? E os ciganos? E os gays? E os italianos, os franceses, os norte-americanos, os brasileiros e, PRINCIPALMENTE, os palestinos, vítimas desta conseqüência da 2ª Guerra que é o estado teocrático-racista de Israel???
Cordialmente,
JRN
Caro Ercy,
seu texto está muito bom, ainda que não concorde com a sua linha de raciocínio. Li Cachorros de Palha e, depois, também uma entrevista com Gray. Esse inglês é polêmico e afirmou nessa entrevista que às vezes exagera justamente para fazer as pessoas pensarem. Aliás, a maoria não pensa. Se pensasse por certo teríamos a proliferação abundande de filósofos. A verdade é que o livro de Gray joga pesado, fazendo picadinho do humanismo e de todos os demais ismos e, de certa forma, desconstrói certas crenças que lá no fundo ainda estão centradas sobre a falsa noção de que a Terra é o centro do universo. Bom, as religiões cristãs consagram toda essa estupidez humana, ao afirmar que por aqui andou um enviado do criador do universo. Cáspite!
Creio que os chimpazés são mais racionais...hehehe...nada como uma boa polêmica e renovo meus cumprimentos pelo seu texto.
Abração do
Aluízio Amorim
P.S.: Estou vendo que entrou aqui um comentarista antissemita e que abençôa o terrorismo. A única coisa que não tem limite para o cérebro dos humanos é a estupidez.
Ooopss...saiu um abençoa com acento. Feita a correção.
Grato
Prezado JRN,
vc tem razao quando lembra que os absurdos da guerra, ainda que nem toda guerra seja logicamente absurda, não escolhem nacionalidade nem etnia. Simpatizo, com o que diz o uruguaio Jorge Drexler, em sua linda "Milonga del Moro Judío" (se vc souber um pouco da biografia dele, fica mais fácil entender o sentido de sua poesia).
Yo soy un moro judío
Que vive con los cristianos,
No sé que dios es el mío
Ni cuales son mis hermanos.
No hay muerto que no me duela,
No hay un bando ganador,
No hay nada más que dolor
Y otra vida que se vuela.
La guerra es muy mala escuela
No importa el disfraz que viste,
Perdonen que no me aliste
Bajo ninguna bandera,
Vale más cualquier quimera
Que un trozo de tela triste.
É o artista que fala (e aqui me dirijo também ao Aluízio!!!), não um general ou um estadista, e muito menos um terrorista. Pra isso serve a poesia, pra acalmar os ânimos...
EM TEMPO: desde que vc leu o post, fiz várias correções necessarias tanto do ponto de vista ortográfico quanto semântico.
Prezado Aluizio,
obrigado pelo comentário. Bem, se ele queria polêmica... Acho bem legalzinho (o pessoal da hora diz "bacaninha") jogar merda no ventilador. Todo mundo já fez isso na filosofia, e é preciso ser um Nietzsche pra fazê-lo bem. Decerto ele deve ter algo a afirmar, e vou esperar pra ver...
Bom texto, Ercy. Mas acho que você deve ler até o final. Acho Gray interessante, mas ele faz umas misturas que, às vezes, lembram os pós-modernos. Acabei de ler o outro livro dele e prometi uma resenha para os meus leitores (se a preguiça deixar...).
Abs.
Reribuirei o link, e seja bem-vindo à blogosfera.
Farei isto!
Considero um deferência especial a sua leitura, o comentário, e o link.
Abraço.
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