18 julho 2007

A descoberta dos livros

Segmento de um capítulo do livro autobiográfico Infância, de Graciliano Ramos. Outro relato semelhante sobre a admiração maravilhada e a curiosidade diante de todos os segredos contidos nos livros encontra-se em "As palavras", de J-P Sartre, que qualquer dia publico aqui.


APARECEU uma dificuldade, insolúvel durante meses. Como adquirir livros? No fim da história do lenhador, dos fugitivos e dos lobos havia um pequeno catálogo. Cinco, seis tostões o volume. Tencionei comprar alguns, mas José Batista me afirmou que aquilo era preço de Lisboa, em moeda forte. E Lisboa ficava longe.

Invoquei, num desespero, o socorro de Emília. Eu preecisava ler, não os compêndios escolares, insossos, mas avennturas, justiça, amor, vinganças, coisas até então desconheecidas. Em falta disso, agarrava-me a jornais e almanaques, decifrava as efemérides e anedotas das folhinhas. Esses retalhos me excitavam o desejo, que se ia transformando em idéia fixa. Queria isolar-me, como fiz quando nos mudamos em razão de consertos na casa. Para bem dizer, os outros é que se mudaram. A pretexto de ver os trabalhos, escapulia-me com o romance debaixo do paletó, voltava, desviava-me dos pedreiros, serventes e pintores, ia esconder-me na sala. Mergulhava numa espreguiçadeira e, empoeirado, sujo de cal, sentindo o cheiro das tintas, passava horas adivinhando a narrativa, à luz que se coava pelos vidros baços. Privara-me desse refúgio. E onde conseguir livros?

Emília tentou auxiliar-me, contou pelos dedos os possuidores prováveis de bibliotecas, sisudos, inacessíveis: dr. Mota Lima, professor Rijo, padre Loureiro. Não me arrisscaria a chateá-Ios. Mais próximo, havia o tabelião Jerônimo Barreto. Diariamente, percorrendo a ladeira da Matriz, demorava-me em frente do cartório dele, enfiava os olhos famintos pela janela, via numa estante, em fileiras densas, bonitas encadernações de cores vivas. À mesa larga, em mangas de camisa, o funcionário manejava instrumentos jurídicos. E um respeito cheio de inveja me detinha na calçada. Atribuí àquele rapaz moreno ciência poderosa, estranhei vê-lo, simples e calmo, juntar-se aos freqüentadores da loja, onde metia na conversa Robespierre e Marat, dois tipos que venerei antes de me chegar qualquer notícia de revolução e da França.

Esperei que Emília falasse a Jerônimo. Recusou-se. Expus a situação a José Batista, o único empregado que não me inspirava rancor. José Batista fechou o diário, escutou-me, julgou dispensáveis os medianeiros, pois a minha preetensão era modesta. Eu a considerava exorbitante.

Saí do escritório num desânimo. Impossível entender-me com o homem sabido, conhecedor de Marat, Robespierrre, outros que me fugiam da memória e da língua. Essas personagens me acovardavam. E o proprietário delas guardava-as com certeza ciumento, não deixaria mãos bisonhas manchá-las de suor. Afirmei, repeti mentalmente que não me avizinharia de Jerônimo Barreto.

Dirigi-me à casa, subi a calçada, retardei o passo, como de costume, diante das procurações e públicas-formas. E bati à porta. Um minuto depois estava na sala, explicando meu infortúnio, solicitando o empréstimo de uma daquelas maravilhas. Mais tarde me assombrou o arranco de energia, que em horas de tormento se reproduziu. Como veio semelhante desígnio? De fato não houve desígnio. Foi uma inexplicável desaparição da timidez, quase a desapariição de mim mesmo. Expressei-me claro, exibi os gadanhos limpos, assegurei que não dobraria as folhas, não as estragaria com saliva. Jerônimo abriu a estante, entregou-me sorrrindo o Guarani, convidou-me a voltar, franqueou-me as coleções todas.

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