Freud iniciou sua carreira médica como neurologista e neurocientista. Há quem afirme que, tivesse ele seguido com seus estudos sobre o sistema nervoso de animais invertebrados, e teria provavelmente descrito a estrutura dos neurônios como a conhecemos hoje. Foi como neurologista que entrou em contato com os quadros de histeria que serviram de base para o desenvolvimento da teoria e do método psicanalíticos. De fato, as então denominadas neuroses histéricas mimetizam os sintomas neurológicos, embora não apresentem nenhuma lesão propriamente neurológica que os justifique. Em busca da compreensão e da cura para as paralisias, amnésias e alterações de consciência apresentadas pelos pacientes conversivos (histéricos), em sua maioria mulheres, Freud chegou à conclusão de que eram causadas por conflitos psíquicos aos quais o paciente não tinha acesso consciente. Para desvendá-los, criou o método da livre-associação que deu origem à psicanálise.
Apesar da enorme contribuição que deu para o conhecimento da mente humana, Freud, com sua aguda percepção do mundo, sempre soube reconhecer os limites e a provisoriedade de sua teoria, como das ciências em geral. Não surpreende que tenha previsto os avanços que estamos assistindo hoje nesse conhecimento. “As deficiências de nossa descrição”, escreveu ele em 1920, “desapareceriam provavelmente se já estivéssemos em condições de substituir os termos psicológicos por outros fisiológicos ou químicos”. Freud anteviu não só o desenvolvimento da neurociência como a possibilidade de tratar com medicamentos muitos dos sintomas psiquiátricos sobre os quais a psicanálise tinha pouca eficácia.
Com o passar do tempo, na medida em que se multiplicaram e institucionalizaram os diferentes modelos antropológicos, psicanalíticos, psicológicos e psiquiátricos sobre a saúde e a doença mentais, os diálogos entre estes foram se tornando progressivamente mais estereotipados e improdutivos. Ao contrário de Freud, cuja obra é fundamentalmente interdisciplinar, tanto seus seguidores quanto seus detratores persistem no apego a uma duradoura e deletéria dicotomia entre corpo e mente, natureza e cultura, ou biologia e aprendizagem.
Foi necessário alguém com a autoridade de um Prêmio Nobel em Medicina (2000) para ampliar o diálogo entre psicanálise eneurociências, e lhe conferir a importância devida, pelo menos no contexto da comunidade psiquiátrica mundial. Eric Kandel é um neuropsiquiatria norte-americano, nascido em Viena (onde Freud viveu e produziu a maior parte desua obra), que iniciou sua carreira estudando psicanálise, tendo migrado depois para as neurociências em busca de uma maior compreensão dos mecanismos neurofisiológicos da memória. Este austríaco fez, portanto, o caminho inverso ao de seu compatriota mais famoso: partiu da psicanálise para chegar às neurociências.
Como alguém oriundo do campo da psicanálise, Kandel fala com autoridade quando sugere que ela tanto pode indicar caminhos importantes para a pesquisa neurocientífica, como renovar-se a partir desta última. Suas propostas, ainda que fundamentadas em sólido arcabouço científico, podem causar desconforto nos cartesianos mais ferrenhos, pois rompem com uma concepção metafísica da mente, localizando na atividade cerebral o registro e a dinâmica de toda a vida interior. Isso não significa reduzi-la ao seu substrato biológico, nem tampouco, como veremos, menosprezar a importância das experiências emocionais. Ao contrário, Kandel se preocupa em entender como asubjetividade é construída a partir dessas experiências, na medida em que ficam indelevelmente registradas no tecido nervoso e determinam as respostas às novas situações vividas pelo indivíduo. Aliás, é bom lembrar, seus estudos sobre a memória foram primariamente motivados pelo reconhecimento da importância das vivências mais precoces para o resto da vida das pessoas.
No importante artigo “Biology and the Future of Psychoanalysis”, publicado originalmente em 1999, Kandel (2005) assinala a estagnação da psicanálise como fonte de novos aportes à compreensão da mente, e o declínio de sua influência. Ele reconhece as potencialidades surgidas do diálogo entre as ciências cognitivas e a neurociência, e acrescenta: “Minha esperança é que, ao juntar-se à neurociência cognitiva no desenvolvimento de uma nova e estimulante perspectiva sobre a mente e seus distúrbios, a psicanálise reconquiste sua energia intelectual”. Em seguida, descreve alguns pontos de intersecção entre a esta e a biologia e sugere como podem vir a serem investigados, alguns dos quais resumirei a seguir. (continua)
Kandel, E.R. (2005) Psychiatry, psychoanalysis, and the biology of mind. Arlington: American Psychiatric Association.
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