09 julho 2007

As teorias da identidade (I)

O ser humano não se diferencia de outros animais simplesmente porque pensa, mas sim porque é capaz de pensar sobre o próprio pensamento. Tampouco se diferencia por ter uma consciência de si mesmo, pois já está provado que os primatas superiores (como os chimpanzés) também a têm. O ser humano se diferencia por ter consciência da própria consciência! Assim, somente nós podemos, além de saber quem somos, nos perguntarmos, “mas afinal, o que é o Eu?”
A maioria das pessoas é capaz de se perguntar “quem sou eu?”, ou seja, quais as minhas características, quais os atributos de minha identidade que me fazem semelhante ou diverso de outras pessoas? Entretanto, a pergunta “o que é o Eu?” não costuma ocupar as mentes de grandes parcelas da humanidade. Se nos detivermos sobre esta pergunta, talvez sequer saibamos dizer se o Eu (com maiúscula para diferenciar o substantivo do pronome pessoal) é um substantivo concreto (como uma “pessoa”) ou abstrato (como o “egoísmo”). O Eu não é nem bem uma coisa nem outra, mas o que os filósofos e lingüistas chamam de “constructo”, algo que existe na teoria e que pode ser percebido experimentalmente, mas não tem uma existência concreta, como o centro de gravidade ou a força magnética. É este Eu que em inglês se chama the self; em francês moi-même, assim como, em português, podemos denominar de o “si-mesmo”.

Voltando à pergunta sobre a natureza do Eu, apesar de ocupar poucas mentes, ela está no centro das preocupações filosóficas desde, pelo menos, os tempos de Sócrates. Ele é tido como o primeiro filósofo a pensar sobre a condição de “indivíduo”, como aquele que deve ser responsável pelas próprias escolhas morais.
É bem verdade que perguntas como “quem sou eu?” são o ponto de partida das reflexões filosóficas sobre a natureza da identidade. Tomemos, por exemplo, a definição de self (Eu) segundo o dicionário Webster´s (uma espécie de Aurélio norte-americano): “é a pessoa integral de um indivíduo; o caráter ou comportamento típico de um indivíduo (como quando se diz “o seu verdadeiro Eu foi revelado”); um comportamento ou caráter temporário do indivíduo (como quando se diz “ele mostrou o melhor de si-mesmo”); a união de elementos (como corpo, emoções, pensamentos e sensações) que constituem a individualidade ou a identidade de um pessoa”.
Quantas indagações surgem desta simples – e aparentemente tão clara – definição! Perguntas que não nos fazemos normalmente, mas que os teóricos da mente (filósofos, cientistas sociais, psicólogos, etc.) se fazem. Em primeiro lugar, dizer que é a pessoa total do in-divíduo significa, pela etimologia da palavra, dizer que o Eu é indivisível, ou seja, que cada pessoa é uma só e, por dedução, sempre a mesma! Sabemos muito bem que tal conceito de pessoa é problemático. Não apenas nossa experiência pessoal nos permite perceber, como as teorias contemporâneas sobre a identidade nos confirmam, que somos ao mesmo tempo um e muitos “Eus”. O meu Eu de professor pode ser bastante diverso do meu Eu de terapeuta, que por sua vez difere substancialmente do Eu familiar, embora todos tenham um núcleo em comum.
Um segundo sinônimo, que por motivos práticos eu utilizei inclusive no título deste artigo, é “identidade”. Bem, novamente aqui devemos recorrer a etimologia da palavra, que vem do étimo latino idem, ou seja, “o mesmo”. Mas, será que nosso Eu é sempre o mesmo, no sentido de ser sempre igual? Já assinalei no parágrafo anterior que esta idéia precisa ser colocada em perspectiva. Somos a um só tempo diferentes (tanto em situações diversas no mesmo tempo, quanto ao longo de nossas vidas, na medida em que passamos por diferentes idades). Antes de ser una e constante, a nossa identidade é dinâmica e multifacetada (aqui há uma contradição de termos, mas não podemos fugir ao uso corrente das palavras). A questão que se coloca para a psicologia é saber em que medida o sujeito se mantém o mesmo, e tem uma vivência suficientemente forte do que constitui o si-mesmo, apesar da passagem do tempo e das mudanças contextuais.
Os antropólogos nos informam que se desconhece qualquer cultura humana que não tenha um termo para designar o Eu, ou pelo menos uma noção abstrata de identidade. Apesar disto, as maneiras como a identidade é pensada ao longo do tempo e através das culturas varia grandemente. Essa noção de Eu como algo indivisível, coeso e permanente é apenas uma delas, e tem sido a maneira predominante na cultura ocidental da qual fazemos parte. Este ponto de vista deve muito aos pensadores da modernidade, que retomaram as reflexões dos filósofos clássicos após o término da Idade Média. Mas isto é assunto para o próximo mês.

Artigo publicado também no Floripa Total.

Um comentário:

Jorge Cardoso disse...

Existe um único Eu, a pedra fudamental sobre a qual adrem-se u sustentam-se outras que são de função cosmética servindo tão somente para possibiitar a convivência com os Eu(s) dos outros seres vivos inclusive humanos. Talvez a grande sacada mesmo seja descobri como é e de que é feita esse monolito. Acredito que é algo análogo a partícula fundamental da matéria que tantos físicos gostariam de descobrir.
Grande abraço