03 outubro 2010

o genial gilberto freyre

A recente publicação de um livro póstumo de Gilberto Freyre me reconduziu à sua obra prima Casa-Grande e Senzala. Este livro já me causara uma forte e duradoura impressão quando o li a primeira vez, na década de 80, e o recomendo a todos que queiram entender o Brasil, mesmo quem não tenha formação em ciências sociais. Leiam-no, inclusive, pela boa literatura que é. Como uma saga ou um romance histórico.

Casa-Grande é um rico retrato do Brasil colonial. É verdade que, como apontam alguns críticos, ele carrega as cores da realidade nordestina, especialmente do Pernambuco de Freyre. Mas ali estão as características marcantes do organização social dos primeiros três séculos de uma proto-nação, da economia açucareira, da escravidão, das influências culturais dos portugueses, índios e negros; e do que, na visão do sociólogo, marca definitivamente o Brasil, a miscigenação entre esses três grupos populacionais. Uma mistura que ele reconhece como riqueza, como vantagem, e como patrimônio.

Gilberto Freyre desfaz o mito de que fomos colonizados por uma escória formada por degredados, até porque os portugueses não tinham tanta gente para degredar. Foi projeto de Portugal ocupar suas terras e plantar aqui as bases de uma colônia produtiva, e, para isto, teria para cá enviado representantes de sua nobreza.



Algumas passagens, escolhidas quase ao acaso, dão uma pequena amostra da beleza do texto que, nos anos subseqüentes à sua publicação, em 1933, foi traduzido para dezenas de idiomas e acolhido com entusiasmo pela comunidade acadêmica.

A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente.

Freyre dedicou grande espaço as contribuições dos índios à cultura, passando pela pela religiosidade, pela culinária e pela língua. Quando fala do indígena na formação da família brasileira, e coerentemente com sua própria vida privada, é grande também nesse capítulo a ênfase dada à sexualidade. Freyre afirma, com muita picardia, que “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia [de Jesus] precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne”. Além disso, a higiene e a vaidade, o gosto pelos enfeites, teriam sido outras das herenças desse grupo

Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influencia de tão remotas avós.

Filho de um importante latinista, como relata em seu livro póstumo De Menino a Homem, Freyre construiu uma sólida formação intelectual. Estudou num colégio americano, aos 14 anos já ensinava latim, e aos 18 segue para os Estados Unidos, onde foi aluno de Franz Boas, um dos fundadores da Antropologia Cultural. A publicação de Casa-Grande e Senzala, quando tinha apenas 33 anos de idade, tornou-o uma verdadeira celebridade. Freyre não usa de nenhuma falsa modéstia quando relembra esses fatos, e o seu sucesso com as mulheres, em suas memórias.

A genialidade de Gilberto Freyre fez dele um pioneiro nos estudos interdisciplinares, e sua obra foi reconhecida pela originalidade com que articula saberes de diferentes áreas, além do estilo refinado, quase literário, com que constrói o seu retrato do Brasil colonial. Se o Brasil quer ter orgulho de si mesmo – ou do que de bom tem, em tempos de governos que nos envergonham diante da comunidade internacional – é bom que mantenha viva a memória deste ilustre brasileiro. (mais)

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