(Sugiro associar a leitura deste post)
As grandes catástrofes climáticas que atingem de tempos em tempos Santa Catarina, como ocorreu recentemente, são seguidas de extensas reações de solidariedade em todo o país. Tal mobilização coletiva coloca em questão um dos pressupostos mais difundidos a respeito da sociedade contemporânea, já abordado inclusive em artigos anteriores: o de que, em nossos dias, o individualismo (leia-se: egoísmo) só faz crescer, e, em contrapartida, os laços sociais se fragmentam.
Felizmente, nada é tão linear ou tão simples quando se trata do ser humano. Assim como forças homogeneizantes da globalização encontram resistências no renascimento das culturas locais (movimentos separatistas e de revalorização étnica, fundamentalismos religiosos, tribalismos e neotribalismos), da mesma forma, há resistências às forças desagregadoras do tecido social.
Existem alguns dilemas morais contemporâneos, que estabelecem uma relação dialética entre egoísmo e altruísmo, individualismo e solidariedade, honestidade e desonestidade. Há, por um lado, fortes tendências ao incremento da competitividade e do narcisismo cultural, que impulsionam as pessoas a buscarem o interesse próprio a todo custo, numa espécie de “salve-se quem puder” ou “cada um por si e Deus por todos”. Mas, como tudo o mais na sociedade, há forças que agem em sentido contrário a estas tendências. Não fosse assim e não veríamos ações de defesa à ecologia mobilizando pessoas ao redor do globo, e que são fundamentalmente de natureza solidária e altruística; o florescimento de uma cultura do voluntariado, que leva pessoas desinteressadas a se engajarem em atividades de apoio a quem mais necessita; uma crescente consciência de cidadania acompanhada de maior responsabilidade pela participação nos espaços de decisão coletiva; e maior respeito às diversidades inerentes à condição humana.
Algumas teorias da “psicologia evolucionista”, ou darwinista, que entende o comportamento humano a partir daquilo que foi mais adaptativo para a sobrevivência da espécie, nos dão pistas sobre o que acontece. A propósito, um dos motivos para se gostar dessa perspectiva é que ela coloca a solidariedade social no centro da “natureza humana”. Natureza que, por sua vez, nos torna culturais e, nesta condição, nos faz sermos fundamentalmente cooperativos. Ou seja, se tivesse predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética (tanto ou mais quanto os sentimentos hostis).
Além disso, os estudos de psicologia têm revelado o que sabemos intuitivamente: que ajudar o próximo pode fazer tão ou mais bem a quem o faz do que a quem recebe. Isto talvez seja uma expressão da herança evolutiva mencionada acima. Apesar de tudo, há sempre os saudosistas que insistem em achar que “antigamente era tudo melhor” – seja lá que “antigamente” é este. As grandes catástrofes que vivemos de perto ensejam oportunidade para que esta cômoda crença seja confrontada.
Foi a civilização ocidental que inventou os direitos humanos e pregou – a partir do Iluminismo – a necessidade de autonomia individual e de liberdade, a capacidade de pensar por si mesmo recorrendo à razão, e a aspiração ao progresso. Não nos esqueçamos, entretanto, que apesar da crença na “racionalidade moderna”, a humanidade deu abrigo, até muito recentemente, a comportamentos auto-destrutivos e bastante primitivos: o racismo, a escravidão, a desigualdade entre os sexos, a discriminação das minorias, o terrorismo de Estado, a tortura, o genocídio, o totalitarismo, os campos de concentração. Para ficarmos apenas com o primeiro desses crimes, é importante que nos demos conta de que há pouco mais de um século ainda convivíamos, no Brasil, com a vergonha da escravidão como uma instituição legalmente, e, para muitos, moralmente aceita.
Sim, estamos – a sociedade como um todo – fazendo grandes progressos, apesar das guerras, dos crimes ambientais, da violência urbana, das iniqüidades sociais que persistem. Nas sociedades desenvolvidas, pelo menos, já não se admite que pais castiguem fisicamente seus filhos, que maridos agridam suas esposas, ou que pessoas sejam discriminadas pela cor de sua pele. Estes fatos ainda ocorrem, mas já não são socialmente sancionados pela maioria. Não é pouca coisa.
E, tão importante quanto isso, os eventos recentes mostram que a solidariedade permanece sendo um valor básico da sociedade, cultivado por grandes parcelas da população. O ser humano, por enquanto, parece ainda ter salvação!
A Mulher que Botou O Diabo na Garrafa
José Francisco Borges
Os Retirantes
José Miguel da Silva
Disponíveis em Indigo Arts
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