28 março 2009

quartetos de beethoven


Os últimos quartetos para cordas de Beethoven são considerados por muitos críticos o ápice de sua obra, pelo menos da camerística. Escritos entre 1825 e 1827 (ano de sua morte), correspondem a um período em que Beethoven já estava completamente surdo e vivia só e amargurado, praticamente no ostracismo. Do ponto de vista formal, os quartetos tardios ultrapassam o romantismo e antecipam muitos aspectos da música contemporânea.




Kenneth e Valerie McLeisch (Guia do ouvinte de música clássica, Zahar, 1991) indicam a audição, entre os mais geniais desse período, do Op.132 (especial atenção ao III movimento - molto adagio); do op. 131; e da Grande fuga, op. 133.

Adendo. A HBO produziu, faz alguns anos, um seriado sobre a participação da Companhia Easy de paraquedistas, na II Grande Guerra: Band of Brothers. No episódio 9 -- "Por isso nós lutamos" -- os americanos chegam aos campos de concentração nazistas, e descobrem o maior horror da guerra. Nessa cidade, quatro músicos alemães reúnem-se na rua, em meio à destruição, e tocam um quarteto para cordas de Beethoven.


18 março 2009

igreja e aborto


Recebi de Magenco e reproduzo aqui o artigo de Drauzio Varella, publicado no Caderno Ilustrada da FSP de 14/03/2009.


INCOERÊNCIA CATÓLICA

Os males que a Igreja causa em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos.

AOS COLEGAS de Pernambuco responsáveis pelo abortamento na menina de nove anos, quero dar os parabéns. Nossa profissão foi criada para aliviar o sofrimento humano; exatamente o que vocês fizeram dentro da lei ao interromper a prenhez gemelar numa criança franzina. Apesar da ausência de qualquer gesto de solidariedade por parte de nossas associações, conselhos regionais ou federais, estou certo de que lhes presto esta homenagem em nome de milhares de colegas nossos.

Não se deixem abater, é preciso entender as normas da Igreja Católica. Seu compromisso é com a vida depois da morte. Para ela, o sofrimento é purificador: "Chorai e gemei neste vale de lágrimas, porque vosso será o reino dos céus", não é o que pregam?

É uma cosmovisão antagônica à da medicina. Nenhum de nós daria tal conselho em lugar de analgésicos para alguém com cólica renal. Nosso compromisso profissional é com a vida terrena, o deles, com a eterna. Enquanto nossos pacientes cobram resultados concretos, os fiéis que os seguem precisam antes morrer para ter o direito de fazê-lo.

Podemos acusar a Igreja Católica de inúmeros equívocos e de crimes contra a humanidade, jamais de incoerência. Incoerentes são os católicos que esperam dela atitudes incompatíveis com os princípios que a regem desde os tempos da Inquisição.

Se os católicos consideram o embrião sagrado, já que a alma se instalaria no instante em que o espermatozoide se esgueira entre os poros da membrana que reveste o óvulo, como podem estranhar que um prelado reaja com agressividade contra a interrupção de uma gravidez, ainda que a vida da mãe estuprada corra perigo extremo?

O arcebispo de Olinda e Recife não cometeu nenhum disparate, agiu em obediência estrita ao Código Penal do Direito Canônico: o cânon 1398 prescreve a excomunhão automática em caso de abortamento.

Por que cobrar a excomunhão do padrasto estuprador, quando os católicos sempre silenciaram diante dos abusos sexuais contra meninos, perpetrados nos cantos das sacristias e dos colégios religiosos? Além da transferência para outras paróquias, qual a sanção aplicada contra os atos criminosos desses padres que nós, ex-alunos de colégios católicos, testemunhamos?

Não há o que reclamar. A política do Vaticano é claríssima: não excomunga estupradores.

Em nota à imprensa a respeito do episódio, afirmou Gianfranco Grieco, chefe do Conselho do Vaticano para a Família: "A igreja não pode nunca trair sua posição, que é a de defender a vida, da concepção até seu término natural, mesmo diante de um drama humano tão forte, como o da violência contra uma menina".

Por que não dizer a esse senhor que tal justificativa ofende a inteligência humana: defender a vida da concepção até a morte? Não seja descarado, senhor Grieco, as cadeias estão lotadas de bandidos cruéis e de assassinos da pior espécie que contam com a complacência piedosa da instituição à qual o senhor pertence.

Os católicos precisam ver a igreja como ela é, aferrada a sua lógica interna, seus princípios medievais, dogmas e cânones. Embora existam sacerdotes dignos de respeito e admiração, defensores dos anseios das pessoas humildes com as quais convivem, a burocracia hierárquica jamais lhes concederá voz ativa.

A esperança de que a instituição um dia adote posturas condizentes com os apelos sociais é vã; a modernização não virá. É ingenuidade esperar por ela.

Os males que a igreja causa à sociedade em nome de Deus vão muito além da excomunhão de médicos, medida arbitrária de impacto desprezível. O verdadeiro perigo está em sua vocação secular para apoderar-se da maquinária do Estado, por meio do poder intimidatório exercido sobre nossos dirigentes.

Não por acaso, no presente episódio manifestaram suas opiniões cautelosas apenas o presidente da República e o ministro da Saúde.

Os políticos não ousam afrontar a igreja. O poder dos religiosos não é consequência do conforto espiritual oferecido a seus rebanhos nem de filosofias transcendentais sobre os desígnios do céu e da terra, ele deriva da coação exercida sobre os políticos.

Quando a igreja condena a camisinha, o aborto, a pílula, as pesquisas com células-tronco ou o divórcio, não se limita a aconselhar os católicos a segui-la, instituição autoritária que é, mobiliza sua força política desproporcional para impor proibições a todos nós.


11 março 2009

deus no cérebro



Brain scans of participants thinking about God show activation in the parts of the brain where people empathize with others. One such brain region, called the precuneus (the upper green dot), is also associated with imagination, balancing complex tasks and self-consciousness. During the same scan (see far left and far right images) there was also activation in visual processing areas, indicating that humans visualize God using the same brain networks involved when humans visualize themselves. Kapogiannis et al/PNAS

Estudo demonstra que o cérebro humano é ativado quando pensamos em Deus da mesma forma que qualquer outra pessoa. Num estudo com 40 pessoas - religiosas e não religiosas - revelou que uma frase como "eu acredito que Deus está comigo durante o meu dia e me observa" ativa as mesmas regiões que usamos para decifrar emoções e intenções de outras pessoas. Estas regiões seriam, portanto, aquelas responsáveis pela empatia e entendimento mútuo.
A matéria traz também aspectos do aparecimento das religiões e seu papel no processo evolutivo. (veja)

COMENTÁRIO: Uma inferência que o estudo permite fazer é o quanto a figura de Deus é antropomórfica, o que, do ponto de vista psicológico, revela o quanto projetamos de nós mesmos na figura "humanizada" de Deus.

02 março 2009

o tigre branco


A Índia está em alta: no carnaval deste ano, com o samba enredo da Escola de samba da Vila Madalena, de São Paulo; na TV com o infame folhetim Caminho das Índias; no cinema com o multi-premiado Como se tornar um milionário (Slumdog millionaire); e na literatura, com dois títulos publicados no Brasil no ano passado: A feiticeira de Florença e O tigre branco.

O primeiro, de Salman Rushdie, não comentarei, além de dizer que o achei de um realismo mágico rocambolesco e um tanto rocoró, como sugere a capa do livro. Vale mais pela ambientação histórica, e pelos inusitados vínculos ficcionais entre Américo Vespúcio, Maquiavel e o aventureiro florentino que representa a ponte cultural entre Ocidente e Oriente.

O tigre branco,
primeiro romance do jornalista indiano Aravind Adiga, foi ganhador, com justiça, do Man Booker Prize 2008, o prêmio anual para melhor ficção de escritores da comunidade britânica e Irlanda. Aravind Adiga nasceu na Índia, em 1974, e estudou literatura inglesa na Columbia University e em Oxford. Antes de escrever este livro foi repórter da Time Magazine e de outros jornais influentes.


Balram, esse "tigre branco" de Déli, é muito parecido ao Jamal Slumdog de Mumbai, assim como essas cidades, nas disparidades sociais e na miséria extrema. Só não direi que sejam muito parecidas às grandes cidades brasileiras porque a miséria e as desigualdades sociais indianas conseguem ser ainda mais agudas e degradantes que as nossas. Entretanto, a exploração da pobreza e a bandidagem, em todos os níveis da sociedade, estas não são em nada diferentes, em suas várias modalidades, tão bem conhecidas por nós: ação de gangues, exploração de menores, abuso de autoridade e corrupção de governantes.

O título do livro remete a um raro animal da Índia, porque na natureza só nasce um a cada geração. Assim como Balram Halwai, narrador dessa ficção, escrita na forma de uma longa carta endereçada ao primeiro-ministro chinês, que, segundo os noticiários, estaria visitando a Índia para conhecer as bases do desenvolvimento capitalista desse país emergente.

Após ter deixado sua aldeia natal, Balram vê-se servindo de motorista a um casal da burguesia ascendente, numa Déli que é um canteiro de obras, com novos condomínios de luxo e shopping centers. Balram cumpre com seu dever de fiel empregado, ocultando o atropelamento causado pela esposa do patrão, completamente embriagada. Crime pelo qual terá de se responsabilizar mais adiante.



Peguei um balde com água e lavei o carro. Limpei tudo com o maior cuidado e esfreguei bem nos lugares onde havia carne e sangue: tinha um pouco das duas coisas em volta das rodas.

Quando ele desceu, eu estava lavando os pneus pela quarta vez.

-- Bom?

Mostrei-lhe um pedaço de pano verde ensangüentado que tinha ficado preso numa das rodas.

-- Esse tipo de pano é coisa barata, patrão -- disse eu, esfregando o tecido grosseiro entre os dedos. -- é o que se usa para vestir crianças.

-- Não ouvi nenhum barulho, patrão. Nenhum mesmo. E o corpo nem se mexeu.

-- Meu Deus, Balram! O que vamos fazer agora? O que vamos...? -- Deu um tapa na própria testa. -- O que essas crianças ficam fazendo, andando por Déli à uma da manhã, sem ninguém para tomar conta delas?

Quando disse isso, seus olhos se iluminaram.

-- Ah, era uma dessas pessoas.

-- Que moram debaixo das pontes e dos viadutos. Também acho, patrão.

-- Nesse caso, será que alguém vai dar pela falta dela?

-- Acho que não, patrão. Sabe como é essa gente lá da Escuridão: são oito, nove, dez filhos... Às vezes, eles nem sabem como os filhos se chamam. Os pais, mesmo que estejam aqui em Déli, mesmo que saibam onde ela está hoje, não vão à polícia.

Ele pôs a mão no meu ombro, como tinha feito com Pinky Madam horas antes.

Depois, pôs um dedo diante dos lábios.

Fiz que sim com a cabeça.

-- Claro, patrão. Agora, durma bem... Foi uma noite difícil para o senhor e Pinky Madam.

Tirei a túnica de marajá e fui dormir. Estava cansado como o diabo, mas, nos lábios, tinha aquele sorriso largo e satisfeito que surge quando cumprimos o nosso dever para com nosso patrão, mesmo nos momentos mais difíceis.


Balram dirige-se ao primeiro-ministro chinês para lhe dar sugestões sobre o que faz da Índia um próspero país. É como "um ato de empreendedorismo social" que ele define o assassinato por ele cometido e que permite sua ascenção à condição de empresário. A partir daí, dedica-se ao "empreendedorismo comercial".

Embora Adiga afirme que o romance não é uma declaração política, faz um importante alerta que, para quem leu seu livro, é bastante compreensível:


I'm increasingly convinced that the servant-master system, the bed rock of middle-class Indian life, is coming apart: and its unravelling will lead to greater crime and instability. The novel is a portrait of a society that is on the brink of unrest.


Aravind Adiga escreve com ironia, com acidez, e com um humor fino que torna a leitura desse livro um prazer; e um exemplo de boa literatura contemporânea. Além de um retrato realista de uma Índia bipartida, com um pé na Luz e outro na Escuridão, um pé no capitalismo global e outro na miséria medieval.


01 março 2009

as palavras & o tempo


Ainda a propósito de tristeza e luto (post anterior), uma pérola de sensibilidade psicológica de Milton Hatoum, em sua melhor forma:



Eu não conseguia sair de perto de Domingas. Um curumim do cortiço foi entregar um bilhete a Rânia. Escrevi: "Minha mãe acabou de morrer".
Naquela época, tentei, em vão, escrever outras linhas. Mas as palavras parecem esperar a morte e o esquecimento; permanecem soterradas, petrificadas, em estado latente, para depois, em lenta combustão, acenderem em nós o desejo de contar passagens que o tempo dissipou. E o tempo, que nos faz esquecer, também é cúmplice delas. Só o tempo transforma nossos sentimentos em palavras mais verdadeiras, disse Halim durante uma conversa, quando usou muito o lenço para enxugar o suor do calor e da raiva ao ver a esposa enredada ao filho caçula.

Milton Hatoum,
Dois irmãos