Segmento do capítulo "O médico e a familia do paciente", publicado no livro Psiquiatria para estudantes de Medicina (referência ao final).
Andolfi (1996) afirma que "com a passagem para uma visão mais complexa das relações interpessoais, o modelo diádico não é mais suficiente, pois não dá conta do vasto sistema dentro do qual uma relação entre duas pessoas se desenvolve" (p. 30). Baseados nesta idéia, podemos dizer que a relação entre o médico e o paciente só pode ser observada e entendida se os contextos mais amplos em que ela ocorre forem levados em conta. Um deles é o serviço de saúde (hospital, ambulatório, clínica, consultório particular). Outro é família do paciente, com a qual se estabelece triangulação que pode ser definida pelos termos médico-paciente-família. De fato, dificilmente pode entender os processos de construção e manutenção da doença, sem levar em conta o contexto familiar do paciente. Da mesma forma, a família pode ser um contexto de cura, de potencialização de recursos terapêuticos (Cataldo e cols. [199?]; Soar Filho, 1998).
É desta unidade de observação que nos ocuparemos agora, discutindo as possíveis ressonânncias entre a história pessoal do médico e as histórias e configurações familiares de seus pacientes. O médico pode vir a ter uma relação tão intensa com a família do paciente (como nos casos de um politraumatismo grave com internação em UTI), e/ou tão prolongada (como nas enfermidades psiquiátricas e nas doenças crônicas em geral), que se pode afirmar que passa a formar, com ela, um sistema maior, que chamaremos, seguindo um modelo das terapias sistêmicas, de sistema terapêutico. Assim, ele fica sujeito a ser "absorvido" pelo sistema familiar, e a ocupar determinaadas funções que podem servir tanto à doença quanto à cura.
A história de vida do médico e, especialmente das relações com sua família de origem, pode ter uma grande influência sobre sua prática profisssional, tanto no sentido de prejudicar quanto de facilitar seu manejo de determinadas situações (daí a conveniência de que em algum momento de sua formação passe pela experiência de terapia pesssoal). Se o médico vivenciou, por exemplo, a morte de sua mãe por câncer, e na época sua família manteve segredo em torno do diagnóstico, não o revelando para "proteger" a mãe (geralmente o doente sabe de sua condição melhor que os familiares possam imaginar), ele pode vir a ter arreependimentos ou ressentimentos por não ter perrmitido que ela se preparasse para a morte, se despedisse devidamente da família, ou porque ele mesmo não lhe disse tudo o que gostaria de dizer. Tal situação pode, se não estiver devidamente elaborada, levá-lo a uma excessiva identificação com os familiares que passam por situações semelhanntes, gerando-lhe ansiedade e desconforto. Por outro lado, se tiver a oportunidade de aprender com sua vivência, poderá desenvolver uma maior empatia (capacidade de se colocar no lugar do outro), e sentir-se mais apto a ajudar as famílias de seus pacientes (Zimerman, 1992).
Pode ocorrer, também, que na família do paciente existam pessoas que lembram o médico de seus próprios parentes (e geralmente isto ocorre de forma inconsciente), como um pai autoritário, uma mãe depressiva, ou um irmão competitivo, gerando os sentimentos desagradáveis, Também pode ocorrer o contrário, que o médico venha a sentir desejo de proximidade, amor, ou aprovação em relação à família. Estas reações são denominadas, na teoria psicanalítica, de constratransferência, e a sua devida compreensão pode se tornar uma ferramenta para que o médico entenda melhor a si mesmo e à família.
Além das experiências pessoais do médico, existem aspectos de sua personalidade que podem dificultar o relacionamento tanto com o paciente individualmente, quanto com a família. Um médiico demasiadamente narcisista (que tem um senso de auto-estima demasiadamente frágil e dependente da aprovação dos outros) pode ter dificuldades em lidar com críticas, comportamentos de oposição à sua autoridade, e com toda uma gama de sentimentos que a família pode depositar nele, (frustração, raiva, impotência, medo ... ). Ele será visto pela família, em algum momento, como um “representante" do universo da doença e dos serviços de saúde (e, neste caso, muitas vezes as queixas são justificadas e realistas), e cabe ao profissional ter suficientemente continência (capacidade de entender e tolerar tais sentimentos, sem revidá-los).
Há situações em que, por mais que o paciente esteja orientado, não segue as orientações médicas. Afastadas outras causas, como as dificuldades financeiras, o médico deve investigar o ganho secundário da doença: as vantagens ou benefícios obtidos através dos sintomas, de exames, ou da condição de enfermo. São relativamente freqüenntes os casos de pessoas que, em função de seus problemas de saúde, passam a deter um enorme poder no interior do sistema familiar, mantendo com isso privilégios pessoais. O ganho secundário pode ter uma função comunicativa, quando a persistência do sintoma ou o boicote ao tratamento servem para expressar sentimentos de raiva, por exemplo, em relação ao marido, ao patrão, ou ao próprio médico ou serviço de saúde. Outras veezes, a doença pode servir para manter a estabilidade do sistema familiar, como já mencionamos anteriormente (Cataldo Neto e cols., [199?]; Soar Filho, 1998),
Diante do alto nível de responsabilidade da profissão médica, o auto-exame é parte indispennsável de sua prática. A melhor garantia contra os impulsos prejudiciais à relação, que se tornam manifestos no comportamento, é a mais ampla conscientização, por parte do médico, de seus sentimentos, necessidades e conflitos.
Referência:
Soar Filho, E.J. (2003). O médico e a família do paciente. Em: A. Cataldo Neto; G.J.C. Gauer & N.R. Furtado (org.). Psiquiatria para estudantes de Medicina. Porto Alegre: edipucrs.
26 março 2007
O médico e a familia do paciente
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