Fiódor Dostoiéviski, em Memórias do subsolo:
Sobre a racionalidade do comportamento
Oh, dizei-me, quem foi o primeiro a declarar, a proclamar que o homem comete ignonímias por desconhecer os seus reais interesses, e que bastaria instruí-lo, abrir-lhe os olhos para os seus verdadeiros e normais interesses, para que ele imediatamente deixasse de cometer essas ignonímias e se tornasse, no mesmo instante, bondoso e nobre, porque, sendo instruído e compreendendo as suas reais vantagens, veria no bem o seu próprio interesse, e sabe-se que ninguém é capaz de agir conscientemente contra ele e, por conseguinte, por assim dizer, por necessidade, ele passaria a praticar o bem? [...] E se porventura acontecer que a vantagem humana, alguma vez, não apenas pode, mas deve até consistir justamente em que, em certos casos, desejamos para nós mesmos o prejuízo e não a vantagem?Razão verus vontade
Pensai no seguinte: a razão, meus senhores, é coisa boa, não há dúvida, mas a razão é só razão e satisfaz apenas a capacidade racional do homem, enquanto o ato de querer constitui a manifestação de toda a vida, isto é, de toda a vida humana, com razão e com todo o coçar-se. [...] Que sabe a razão? Somente aquilo que teve tempo de conhecer (algo, provavelmente, nunca chegará a saber; embora isto não constitua consolo, por que expressá-lo?), enquanto a natureza humana age em sua totalidade, com tudo o que nela existe de consciente e inconsciente, e, embora minta, continua vivendo.
Da resenha de Bruna Callegari:
Memórias do subsolo é um livro perigoso. Aviso, antes de tudo, porque só se percebe quando já se está completamente envolvido por ele. É nesse momento que a leitura se torna prazer, porém um prazer amaldiçoado, absolutamente agressivo, quase masoquista e vicioso, e por isso perigoso.
Publicado em 1864 na revista literária Época, fundada por Dostoiévski e seu irmão Mikhail, o romance nos traz um homem desencantado, funcionário da baixa burocracia russa, que mora com o empregado Apólon num modesto apartamento no subsolo de um edifício. Angustiado e pessimista, esse homem sem nome nos revela, por sua própria voz, um absoluto desprezo pelo mundo a sua volta e, ao mesmo tempo em que escolhe a solidão, parece, em certos momentos, amargurar-se ainda mais com ela.
Ora, o que cargas d’água esse tal homem do subterrâneo está querendo me dizer? Que droga de maluco ele é? O leitor se pergunta a todo o momento, mas, na realidade, não se pode entender completamente esse homem. A única certeza que ele nos dá é a sua profunda aversão pelo racionalismo e pela mentalidade positivista, marcantes do século em que vive: “(...) dois e dois não são mais a vida, meus senhores, mas o começo da morte. Pelo menos, o homem sempre temeu de certo modo este dois e dois são quatro, e eu o temo até agora.”
Esse homem do subsolo, portanto, é o retrato impiedoso da constituição de nossa sociedade moderna, fundamentada na razão iluminista, e de suas contradições. Ele é o embrião de toda a produção chamada madura de Dostoiévski: Crime e castigo, O idiota, Os demônios e Irmãos Karamazov, em que a profunda complexidade e ambigüidade do humano moderno, já presentes em nossa personagem, são levada ao extremo. A relação agônica entre desejo e culpa e a linha frágil que separa a demência da razão, marcas do subsolo que nos fazem como baratas tontas durante a leitura, são ainda mais intensamente exploradas por Dostoiévski nessas obras posteriores, em que inevitavelmente se vê o espectro do nosso homem.
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