Desde sua morte, e infelizmente nunca antes disso, o pintor holandês Vincent van Gogh tem sido objeto de fascínio e curiosidade. E não apenas pelos apreciadores de sua arte, mas também por estudiosos da mente humana que se dedicam a reconstruir os caminhos que o levaram ao suicídio, em 1890. Apesar de ter vivido em completo ostracismo, um século depois o mundo o veria transformado no autor das telas mais valiosas da história e um verdadeiro ícone da cultura pop. Sinal disto é o sucesso que faz um vídeo largamente difundido na internet, em que desfilam seus quadros ao som da canção “Vincent”, que Don McLean fez em sua homenagem.
O irmão de Vincent, Theo, com quem trocou cartas durante toda a sua vida, e de quem dependia para sua sobrevivência, trabalhava numa galeria em Paris. Como forma de pagamento, Theo ofereceu ao pintor Paul Gauguin a possibilidade de dividir a casa com Vincent, em Arles, ao sul da França, onde poderia usufrir da boa luminosidade (e dar algum apoio emocional ao já perturbado irmão). É anedótico o fato de que, ao cabo de nove turbulentas semanas, Gauguin já não suportava o gênio indomável do holandês, e mudou-se às pressas, episódio que foi bem representado no filme “Sede de Viver” (Lust for life, 1956, direção de Vincente Minnelli), estrelado por Kirk Douglas e Anthony Quinn, nos respectivos papéis, e que rendeu ao primeiro uma merecida indicação ao Oscar.
Van Gogh tem sido um desafio para os médicos, sobretudo psiquiatras, pelo fato de ter vivido a maior parte de sua vida atormentado por desequilíbrios emocionais, pela crônica incapacidade de estabelecer relacionamentos duradouros, por seu comportamento irascível, sua impulsividade e suas oscilações de humor. O episódio da auto-mutilação, em que corta o lobo da orelha esquerda, é revelador do sofrimento mental que o obrigou a inúmeras internações psiquiátricas e culminou com o tiro no peito, quando tinha apenas 37 anos de idade, embora já estivesse precocemente envelhecido.
Eu mesmo, como professor de psiquiatria, utilizo reproduções de seus quadros em minhas aulas sobre transtornos de humor, nos quais ficam bem caracterizadas as diferentes fases de seu estado de espírito. Mas não há consenso no meio científico – e estamos muito longe disto - sobre qual a verdadeira natureza de sua doença, ou doenças. Entretanto, recentemente foi pubilicado o livro “A doença e a arte de Vincent van Gogh” (Casa Leitura Médica, 2008), que lança luzes (e, não fosse seu conteúdo médico, talvez se pudesse dizer que são luzes amarelas e vibrantes) sobre a vida e obra desse pintor. A autora, Elza Yacubian, é professora do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia e chefe da Unidade de Epilepsia da Universiade Federal de São Paulo. Diga-se de passagem, os neurologistas também puxam a brasa para sua sardinha, vendo nas crises de van Gogh uma forma de epilepsia, embora este não seja o caso...
Elza Yacubian enumera e discute um enorme número de possíveis diagnósticos que ajudariam a explicar não só o gênio de Van Gogh mas também sua obra. Existem indicações de que Vincent possa ter sofrido de epilepsia, sífilis, intoxicação por chumbo, abuso de absinto, porfiria, além de transtornos psiquiátricos, e seus bem documentados sintomas podem sugerir esquizofrenia, transtorno bipolar do humor ou transtorno de personalidade borderline, para ficarmos apenas com alguns. Particularmente, considero muito plausível o diagnóstico de transtorno bipolar, por suas freqüentes oscilações de humor, que foram evoluindo para um estado que denominamos, em psiquiatria, de “episódio misto”, no qual se misturam elementos de depressão e excitação, geralmente com expressões de irritabilidade e impulsividade. Fecha parênteses.
O mais interessante, nesse livro, é que sua autora não se limita a buscar explicações para a personalidade e para o comportamento social de Van Gogh, mas também para suas preferências artísticas. É claro que as alterações de humor refletem-se nas cores e nas pinceladas, mas Yacubian sugere que os raios e círculos luminosos ao redor das lâmpadas ou de outras fontes luminosas possam ser resultantes de seu glaucoma. Uma possível intoxicação digitálica (o digital era uma planta utilizada em vários tratamentos, inclusive de transtornos mentais) pode também explicar sua predileção pelo amarelo, já que promove uma visão amarelo-esverdeado, assim como as manchas circundadas por coronas, como em seu famoso “A noite estrelada”.
Seguramente algum leitor haverá de protestar contra o que escrevi acima, ou considerar tudo isso uma intromissão ilegítima na obra de um grande artista, e uma apreciação inoportuna de sua obra, a partir de um olhar médico. Não lhe tiro alguma razão de pensar assim. Quero afirmar que, no que me diz respeito, nada disso modifica a admiração pela obra desse genial – e genioso – pintor, e nem tampouco a apreciação de sua originalidade, construída arduamente com as tintas do sofrimento, mas também com um incessante trabalho e amor à arte.
Em tempo: clique na imagem de van Gogh para assistir a um vídeo de seus auto-retratos.
8 comentários:
Fiquei emocionada com a importância e particularidade com que você tratou Van Gogh. Não só sou apaixonada por sua obra, como já passei horas no seu museu, em Amsterdam, seguindo os passos de todos os rascunhos que finalmente se transformavam em arte definitiva. Observar a evolução de cada obra, em risco, perspectiva, cor, é tão ou mais interessante que ver apenas sua obra pronta.
Adorei esse blog, genial!
Parabéns por seu bom gosto e pela maneira franca com que trata o gênio - a personagem que todos admiram, mas ninguém queria ser.
Estou temporariamente cuidando de outros projetos, mas quando e se voltar a publicar meu blog, que nasceu da paixão pela arte e intertextualidade, gostaria que me visitasse.
Shirlei Horta
PREZADA SHIRLEI,
É UM PRAZER TE-LA DE VOLTA COMO UMA (SENAO ÚNICA) LEITORA DESTE BLOG. VOLTEI A POSTAR ALGUMA COISA, MAIS COMO UMA ESPÉCIE DE ARQUIVO ELETRONICO SOBRE ASSUNTOS Q ME INTERRESSAM. NAO FAÇO NADA PARA DIVULGA-LO. ESPERO Q VC REATIVE O SEU TBEM.
ABRAÇO
ERCY
Pois eu saí daqui, Ercy, direto para Dom Quixote, Dali, Hamlet...
Fiquei morrendo de vontade de voltar a postar.
Dom Quixote tem uma edição ilustrada por Dali (!), acho que de 1965.
Esses textos (e muitos mais) estão disponíveis no site http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/PesquisaObraForm.jsp.
Os textos de comemoração aos centenários de D. Quixote são tão bons quanto o livro. Ontem, o seu blog me fez buscar esse trecho:
"De repente olhei por acaso o espelho que estava em cima da chaminé. Que é isso, um sonho
ou um quadro real? Ali, no espelho, divisei o fidalgo da Mancha. Montava seu Rocinante e me fazia amavelmente um sinal com a cabeça. Mas seu rosto me era muito conhecido! Movi o braço para a
esquerda e o cavaleiro do espelho fez o mesmo. Meneei a cabeça; Don Quixote fez idêntico movimento. E logo compreendi quem era e conheci também Rocinante. Mas não vou revelar-vos o segredo... “Louco, para que?” ressoou novamente em meus, ouvidos; mas esta vez já não tive medo da pergunta, porque já sabia que responder. “Louco, para que?”, perguntas, hóspede silencioso e desconhecido dos grandes olhos enigmáticos, “para que?”. Pois agora vou dizer-te: para montar um Rocinante e estar enamorado de uma Dulcinéia del Toboso..."
(Rudolf Rocker, em comemoração ao 3º centenário de publicação da obra)
Shirlei Horta
SHIRLEI, QUE BOM QUE TEVE ESSE EFEITO, O QUE COMPROVA Q VC É MESMO UMA RARA LEITORA, NOS DOIS SENTIDOS... OBRIGADO PELO PRESENTE. A PROPÓSITO, SUGIRO ESTE LINK TAMBEM. ERCY
ERCY, FAZENDO CORO COM A SHIRLEY, QUE TAMBÉM FREQUENTA O MEU BLOGUE E ME HONRA COM SEUS COMENTÁRIOS INTELIGENTES, CONFESSO A EMOÇÃO QUE SENTI AO LER SEU ARTIGO SOBRE VAN GOGH. SUA ANÁLISE ESTÁ PERFEITA E CREIO QUE POUCA GENTE TERÁ ESCRITO ALGO IGUAL, ATÉ ONDE ME CONSTA. ALÉM DISSO, CUMPRIMENTO-O PELA EXCELENE QUALIDADE DO TEXTO EM SI. VOCÊ REDIGE COMO POUCOS. PUDESSEM A LITERATURA E A IMPRENSA CATARINENSES CONTAR COM SUAS PUBLICAÇÕES NUM ÂMBITO MAIS EXTENSO E FREQUENTE. GRANDE ABRAÇO. MARIO GENTIL COSTA
Opa! Novidades a esse respeito! Lembrei logo desse post!
http://ultimahora.publico.clix.pt/noticia.aspx?id=1378669&idCanal=14
Shirlei Horta
Obrigado pela lembrança, Shirlei. Havia sabido dessa notícia, mas só de orelhada (ops!). Agora a tenho em detalhes. Minha intuição é de que os autores estão produzindo um factóide. Há muitas justificativas pra se pensar q foi auto-mutilação, e uma vaga suspeita de que possa ter sido Gauguin. Mesmo assim, penso que não muda substancialmente a história de van Gogh. Valeu!
Postar um comentário