23 janeiro 2009

ter ou não ser


O termo “narcisismo” tem ultrapassado amplamente as fronteiras do discurso técnico, psicológico ou psicanalítico. Todos sabem de sua origem no mito de Narciso, a figura mitológica que, de tão fascinado por sua própria imagem refletida na água, morre de paixão e inanição. Daí a entender as sutilezas do termo, vai uma distância, até porque, mesmo no campo profissional, ele remete a uma grande variedade de significados, a depender do contexto e das escolas.

O termo foi proposto por Freud para designar uma fase do desenvolvimento do bebê em que o amor recai sobre si-mesmo, como no mito grego. Assim, um adulto narcisista seria necessariamente uma pessoa imatura, que não cresceu do ponto de vista emocional o suficiente para desenvolver a capacidade de amar outra pessoa. Entretanto, alguns de seus seguidores ampliaram e modificaram essa noção. Passou-se a pensar o narcisismo também em termos de uma dimensão normal do ser humano. O amor próprio como uma necessidade e uma condição primordial para a felicidade. É a partir daí que se fala em “riscos ao narcisismo”, para se referir aos ataques à segurança ontológica, que geram a depreciação da auto-estima e a insatisfação com a vida.

Nos tempos de Freud, o grande desafio das pessoas era lidar com a repressão, com os conflitos internos entre os impulsos, os desejos e as fantasias, e aquilo que se podia sentir, pensar ou fazer (principalmente quando o assunto era sexo). Estamos falando de uma sociedade do período vitoriano, extremamente moralista e castradora. Hoje, quando podemos quase tudo, a história é diferente. O nosso maior desafio está em conciliar as nossas expectativas de reconhecimento (geralmente vinculadas à aquisição de bens e de status) ao que conseguimos efetivamente ter.

Numa sociedade de consumo de massas, na qual cada vez mais a auto-estima está alicerçada nos símbolos externos de status e de poder, a frustração das expectativas torna-se uma fonte permanente de insatisfação. Valores morais e abstratos, como a generosidade, a simpatia, a amizade e o conhecimento, deixam de ser fontes de reconhecimento social e de auto-valorização.

É esse o sentido que o termo tem no trabalho de importante pensador da cultura de massas em nosso tempo, Cristopher Lasch, autor do livro O mínimo eu. Esse autor usa a expressão “retração narcísica” para caracterizar a busca da sobrevivência psíquica a partir de uma posição fundamentalmente individualista. O perfil do ser narcisista desenhado por Lasch é aquele de um indivíduo cético e cínico, oprimido pela cultura do individualismo competitivo e guiado por uma lógica de auto-preservação. Ganancioso, no sentido de que seus desejos não têm limites, exige imediata gratificação e vive em estado de um desejo perpetuamente insatisfeito.

É esse narcisismo patológico que torna as pessoas mais dependentes tanto da aquisição de bens, como as roupas de grife, os carros portentosos e os celulares de última geração. É esse narcismo que não se satisfaz com o que se tem, o que é vivenciado na forma de inveja e ingratidão, e que leva à busca sempre frustrada de um ideal de beleza e juventude eternas. E é também o que leva as pessoas a buscarem a todo custo a exposição na mídia: nas colunas sociais, nos reality shows, e daí por diante.

Entre as manifestações mais dramáticas e graves do narcismo cultural – não aquele normal e saudável que todos devemos nutrir, a partir da construção de valores interiores – estão as depressões e os chamados “transtornos alimentares”, quadros cada vez mais freqüentes nos consultórios de psicólogos e psiquiatras. Entre estes estão a bulimia e a anorexia nervosa. Em documentário de tevê, assisti a adolescentes de Beverly Hills, na Califórnia, relatarem que os banheiros da High School têm cheiro de vômito, tal a quantidade de garotas portadoras de bulimia.

Na sociedade de consumo, se o indivíduo não tem o tênis de marca, o último modelo de carro, e os seus quinze minutos de fama, então “não pode” ser feliz, porque a felicidade depende mais desses símbolos culturais de poder do que dos valores internos que possam dar um sentido sólido de amor-próprio.

Será que ainda veremos a cura dessa doença?


5 comentários:

Luciana Rodrigues Vasconcellos disse...

Tb acho que é um grande mal dos nossos tempos a tendência à valorização das pessoas pelo que elas tem e não pelo que são. É até comum vermos gente demonstrando: olha só meu novo tênis, minha nova blusa necessitando da aprovação do outro para se sentir bem. Mas, acho que é crescente uma outra tendência em contraposição a essa. Pois muitas pessoas já estão mudando sua maneira de consumir preocupando-se mais com o meio ambiente. Então estou otimista e acho que no futuro a segunda corrente, do consumo responsável vai ultrapassar a primeira dos consumistas desenfreados.

Ercy Soar disse...

Oi Luciana,
estou de completo acordo com vc. Imagino que vc nao tenha lido o post acima - catástrofe & solidariedade - onde expresso um ponto de vista semelhante ao que vc acaba de expor.
Pelo jeito, somos ambos otimistas - apesar de tudo - quanto ao futuro da humanidade. Até porque nao há futuro só pra uma parte dela, ne?! Entao, tomara que as maças podres não estraguem o resto do balaio. Nesse caso, acredito ainda no milagre de que as boas sobrevivam saudáveis, e que o pomar inteiro elimine suas pragas...

Ercy Soar disse...

Olha só... outra vez! Vai ver nao tenho jeito mesmo... (rs)

Luciana Rodrigues Vasconcellos disse...

rsrsr vc é engraçado, eu li juro que li, mas quis comentar nesse post, pq quis comentar sobre o consumismo uai.

Darwinn Harnack disse...

Epicuro dizia que para ser feliz o homem precisa de três coisas: liberdade, amizade e tempo para meditar.

Será que a lógica que rege o mundo moderno ceifou (total ou parcialmente) o homem desses três elementos?

Talvez o epicurismo seja um tanto singelo e o problema do "espírito" humano realmente seja mais complexo. De outro lado, pode ser um início, um indício, uma raiz.