30 outubro 2006

piauí

Existe vida inteligente na imprensa brasileira?


Sim, existe! E a prova é esta bem humorada produção - a Revista Piauí - que reúne alguns das melhores cabeças pensantes desta nau perdida nos tristes trópicos. O formato e a proposta gráfica são diferentes de tudo o que existe por aí (e já se disse que lembra a New Yorker, o que não é uma má referência, afinal das contas). A mim lembrou, apesar das dimensões grandes, muito mais os velhos almanaques que eu adorava recolher nos balcões das farmácias, quando moleque. Ou então, o Pasquim, e não sem razão: esta revista, que apesar do nome é uma idéia bem carioca, mantém o bom humor do velho pasquim, e conta com a presença de alguns de seus colaboradores, como a dobradinha Ivan Lessa & Jaguar.
Vale a pena conferir o ensaio fotográfico realizado por Orlando Brito, denominado muito adequadamente "Vultos da República". Bem a propósito, já que os vultos continuaram a nos assombrar por mais quatro anos!
Ainda não a lí inteira, mas já me divirto muito - enquanto me "ilustro" - com o ensaio de Roberto Pompeu de Toledo sobre "a tradução ornitológica da nacionalidade", o ilustre papagaio. Aqui vai o trecho final:

O papagaio é o Brasil. É folgado e fescenino como os brasileiros. É um bicho que, como os micos e sagüis, distingue-se pela capacidade de imitação. Não é agradável admitir isso, mas os brasileiros somos também imitadores. Ocorre que o papagaio é também inteligente, dotado de atenção e de capacidade de aprender. Ponto para nós. É malandro. O Zé Carioca das revistinhas produzidas no Brasil é“o terror dos credores”, e não é à toa que a palavra “papagaio”, entre suas muitas acepções, tenha a de nota promissória de valor duvidoso. Ponto contra. É um bicho alegre, de aparência carnavalesca, mas também pode ficar triste ao ponto da depressão. É considerado farrista, mas é fiel ao parceiro ou à parceira. Tem um lado místico, com o qual se aproxima do Brasil devoto dos padres Cíceros e dos Antônios Conselheiros. Com esta síntese, voltamos ao terreno da identidade nacional, para concluir que o papagaio encarna à perfeição, sim, a identidade do brasileiro, mas não uma identidade só. Ele encarna as variadas, as múltiplas identidades do Brasil.

Para acessar o site da revista, clique na capa (desenho de Angeli), ou aqui.

Mônica Salmaso

Ainda pouco conhecida do grande público, esta paulistana de 35 anos é aclamada pela crítica como uma das grandes intérpretes da música brasileira, e já fez parcerias com gente como Edu Lobo, José Wisnik e Guinga. Iaiá, é seu quardo álbum, e foi precedido por Afro-Sambas (1995), Trampolim (1998) e Voadeira (1999). Nele Mônica Salmaso resgata algumas canções antigas, como os sambas Moro na roça (Xangô da Mangueira) e Doce na feira (Jair do Cavaquinho), apresenta deliciosas interpretações de É doce morrer no mar (Caymmi) e de Assum branco (Wisnik), e uma intimista Por toda a minha vida (Tom Jobim), apenas com voz e violão; além de outras composições de um time de primeira ordem que inclui Chico Buarque e Tom Zé.
Para conhecer mais sobre Mônica Salmaso, e ouvir as canções de Iaiá, clique na capa do CD. Ao final da página, no site do CafeMusic, você encontra links para outros CDs dela, ou com participações suas.
PS. Agradeço à minha querida Magna Martins, que dividiu o palco com Mônica Salmaso na edição de 2005 da Feira Internacional do Livro de Parati, por ter me apresentado o trabalho dessa ótima intérprete.

Final de eleições

24 outubro 2006

70 anos de "RAÍZES DO BRASIL"


O livro "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, completa 70 anos de sua primeira edição. O pai de Chico Buarque deu ao Brasil mais do que um filho genial; deixou um dos tratados sociológicos mais importantes para a compreensão da brasilidade, de algo que poderia ser chamado de um "caráter nacional". Por isto, ainda que eu não seja sociólogo de formação, assumo a tarefa de lembrá-lo.
Sérgio Buarque de Holanda chamou a atenção para o fato de que, no Brasil, os âmbitos do privado e do público nunca forarn muito claramente demarcados, como herança de uma forte cultura familiar patriarcal e rural. No Brasil colonial (e, infelizmente, ainda hoje, em grande medida), os laços familiares tiveram um grande peso, impondo-se com muita força sobre a impessoalidade e neutralidade das relações que caracterizam a sociedade urbana e burguesa. Aqui não assistimos o surgimento de mecanismos sociais que deveriam regular, como acontece nas sociedades capitalistas modernas, a livre iniciativa e as condições de concorrência entre as pessoas, no âmbito público.
Foi Sérgio Buarque que definiu o brasileiro como o "homem cordial". O termo não se refere a alguém intrinsecamente bom, ou necessariamente bondoso, mas a alguém que leva mais em conta os sentimentos do que as regras neutras da convivência social. A aversão do brasileiro às formalidades e aos rituais da convivência social impessoal é característica de sua "cordialidade". No Brasil, as fórmulas sociais são admitidas apenas até um certo ponto, havendo uma clara tendência a se estabelecer modos mais familiares, mais íntimos, e mais descontraídos de tratamento. O abuso de diminutivos e apelidos, assim como o costume de tratar a todos pelo primeiro nome, são manifestações de nossa cordialidade. Em Florianópolis, por exemplo, telefonistas chamam o cliente de "querido" sem nunca tê-lo visto, e a pessoa a quem você pediu informações na rua se dirige a você como "amigo".
Existe no Brasil a oposição de uma mentalidade citadina e cosmopolita à mentalidade regional e paroquial, que Sérgio Buarque associa, assim como o fez Joaquim Nabuco, à herança da escravidão em nosso país. Ao contrário das sociedades europeias, outra lógica caracterizou a formação da burguesia no Brasil. Lá, assim como na América do Norte, predominou a ética do protestantismo, com a valorização do trabalho individual como caminho para a salvação das almas. Aqui, a compra de indulgências, a comodidade paralisante de uma economia extrativista e escravocrata, e a casa grande como centro de poder. Lá, uma clara separação entre o público e privado. Aqui, a prevalência do que é emocional, passional, e irracional (como tudo o que rege o âmbito privado da vida) por sobre as qualidades ordenadoras, disciplinadoras e racionalizadoras das sociedades modernas.
Atrevo-me a cogitar que o famoso "jeitinho" brasileiro seja uma das manifestações dessa nossa "cordialidade", ou uma de suas contra-faces, e que compartilhe das mesmas origens. Esse jeitinho que, em muitos contextos, pode ser uma forma sutil e incipiente de corrupção; dessa corrupção endêmica que assola nosso país. Esse jeitinho que faz parte de uma cultura da malandragem, que o antropólogo Roberto DaMatta caracteriza como "um modo de navegação social tipicamente brasileiro" (embora este autor lhe atribua uma conotação menos negativa do que a que estou dando).
Raízes do Brasil inaugurou uma forma de análise social capaz de pensar os processos econômicos e políticos como fenômenos da cultura. Sérgio Buarque de Holanda mostra que a facilidade no trato e a hospitalidade de que tanto nos gabamos, "representam, corn efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar boas maneiras ou civilidade".
Sempre é conveniente reler Raízes do Brasil para nos lembrarmos da tarefa que temos ainda pela frente: construir um país em que a nossa cordialidade possa fecundar, na forma de cortesia e generosidade, os modos formais das trocas sociais, inerentes à necessária separação do público e do privado; e no qual o jeitinho possa ser apenas sinônimo da nossa criatividade e engenhosidade na solução dos tantos problemas que temos.
Publicado originalmente no Floripa Total de Julho-Agosto de 2006

23 outubro 2006

O fino da bossa

A descoberta é do Aluízio Amorim- meu caro amigo, conterrâneo de Rio do Sul e jornalista brilhante - que publicou em seu blog; e eu aproveito pra repassar:

Trata-se do grupo “3 na Bossa” (piano: Edmur Hebter; baixo: Elaine do Valle; e bateria: Toninho Pinheiro) com o violão de Roberto Menescal, que se consagrou com a composição “O Barquinho”. A música é Watch what happens, e está disponível no YouTube, bastando clicar na foto do Menescal pra ver e ouvir!

22 outubro 2006

PrOeSiA

o amor é brincadeira
diversão e gozo.
Eros é arqueiro, é arteiro
é criança caprichosa.
portanto, cuidado! que
o amor não é brincadeira
é coisa séria
ou não seria tamanha a dor que causa.
o amor não é tão generoso quanto a amizade
e quem há de negar que esta lhe é superior?
e no entanto a amizade não sabe
o seu agridoce sabor.
egoísta e insaciável e incompleto
é assim o amor
e incompletos que somos
não esquecemos jamais
a promessa que nos faz.


Escrito em maio de 2006
Ilustração: Eros & Psiquê, de Antonio Canova (1757/1822)

Língua


A genial canção Língua, foi lançada por Caetano Veloso em 1984, no LP Velô, numa gravação antológica com a participação de Elza Soares, que na época ressurgia das cinzas como artista popular. Aqui, Caetano brinca de "roçar sua língua na língua de Camões", e faz uma bela homenagem a Fernando Pessoa e a Guimarães Rosa.



Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódia
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?

E deixa os Portugais morrerem à míngua
"Minha pátria é minha língua"
Fala Mangueira! Fala!







21 outubro 2006

drexler - eco2


Jorge Drexler foi o vencedor do Oscar de 2005 de melhor canção original, com Al otro lado del río, da trilha do filme Diários de Motocicleta. A música faz parte do CD eco2, assim como esta ótima canção Todo se transforma. Clique na imagem e vá até listen to samples para ouvir as músicas.

Todo se transforma

Tu beso se hizo calor
luego el calor movimiento,
luego gota de sudor
que se hizo vapor, luego viento
que en un rincón de La Rioja
movió el aspa de un molino
mientras se pisaba el vino
que bebió tu boca roja.
Tu boca roja en la mía,
la copa que gira en mi mano,
y mientras el vino caía
supe que de algún lejano rincón
de otra galaxia,
el amor que me darías,
transformado, volvería
un día a darte las gracias


Cada uno da lo que recibe
y luego recibe lo que da,
nada es más simple,
no hay otra norma:
nada se pierde,
todo se transforma.

El vino que pagué yo,
con aquel euro italiano
que había estado en un vagón
antes de estar en mi mano,
y antes de eso en Torino
y antes de en Torino, Prato,
donde hicieron mis zapato
sobre el que caería el vino.

Zapatos que en unos horas
buscaré bajo tu cama
con las luces del aurora,
junto a tus sandalias planas
que compraste aquella vez
en Salvador de Bahía
donde a otro diste el amor
que hoy yo, te devolvería...

Cada uno da lo que recibe
y luego recibe lo que da,
nada es más simple,
no hay otra norma:
nada se pierde,
todo se transforma.

20 outubro 2006

Desterro

Recentemente, numa passagem por São Paulo, encontrei no saguão do Hotel George V um livro de arte, com reproduções de paisagens e retratos de personalidades brasileiras, pintadas por artistas alemães que estiveram no Brasil, entre os séculos XVII a XIX. Deparei-me com estas duas pérolas, cujos autores não tive o cuidado de anotar, mas que registrei fotografando-as com o celular, motivo pelo qual as reproduções não são de boa qualidade. São obras que retratam a Ilha de Santa Catarina em meados do século XIX.

Lagoa da Conceição

Vila de N. Sra. do Desterro

Et in Arcadia Ego


Ainda sob o impacto da exposição de arte grega em São Paulo (veja post de 18.10.06), e com uma certa - digamos - "sensibilidade clássica" aflorada, não posso deixar de lembrar de Nicolas Poussin (1594-1665).

Poussin foi um mestre do classicismo francês, embora tenha passado a maior parte de sua vida em Roma. Suas telas - geralmente de grandes dimensões, nas quais seu desejo de perfeccionismo fica estampado - retratam cenas bíblicas e temas mitológicos e históricos da Antiguidade Clássica. Dentre estes, deu relevo a temas arcadianos, ou seja, ligados à lendária e bucólica região grega da Arcádia. Este é o caso de Os pastores de Arcádia (1640), uma de suas obras mais conhecidas e divulgadas, em exposição no Museu do Louvre, em Paris. Os pastores lêem, inscrita na pedra, a frase "Et in Arcadia Ego", ou seja, "eu estou em Arcadia". Os estudiosos supõem que quem fala, neste caso, é a própria morte!

Há uma curiosidade sobre este óleo de Poussin. Ele parece retratar um túmulo que efetivamente existiu na região de Arques, na França (aqui numa foto antiga). Esta hipótese levou muitos pesquisadores independentes à propriedade privada onde ele estava localizado, até que, em 1988, um desses exploradores tentou abrir o túmulo com explosivos. Foi o suficiente para que o dono do terreno o mandasse destruir, acabando assim com os problemas que vinha tendo, e enterrando de vez a controvérsia.

19 outubro 2006

O Dr. Guimarães Rosa



Recebi de Magna Martins, a propósito do Dia do Médico, e acho que vale a pena compartilhar com vocês:

"Era o Doutor José Lourenço, do Curvelo. Tudo podia. Coração de Miguilim bateu em descompasso. Pra onde ele foi? Ah, foi pra vereda do Tipã, mas amanhã ele volta, de manhã, e disse, Miguilim, que você querendo, ele junto te leva pra cidade. Você mesmo quer ir, meu filho? (...) Vai, meu filho, vai, é a luz dos teus olhos que só Deus teve poder pra te dar. Vai. Fim do ano, a gente puder, faz viagem também. Um dia, todos se encontram."
Esse fragmento que tirei da memória e que, portanto, pode não estar totalmente de acordo com o texto original, é um dos episódios mais bonitos que já li em literatura. A miopia do personagem Miguilim é descoberta e revelada pelo médico de Curvelo. Após esse episódio, a vida do nosso doce menino nunca mais poderá ser a mesma. Os óculos emprestados do Doutor - bela metáfora do conhecimento - fazem com que Miguilim veja pela primeira vez o lugar onde mora, os detalhes do rosto de sua mãe, "a pele da terra", enfim, o menino constanta que o Mutum é realmente bonito - o que sempre fora uma dúvida capaz de angustiá-lo durante toda a narrativa, afinal, como o garoto só sabia, até então, ver o mundo com outros sentidos, sem o primado da visão perfeita, ele não poderia desfazer a péssima imagem do seu "mundo" herdada de sua mãe. Enfim, o médico, alter ego de Guimarães Rosa, media a travessia do pequeno Miguilim. Ele representa o olhar do "outro" que, por estar "de fora" e, sobretudo, por representar o conhecimento, a iluminação, "limpa" as vistas de Miguilim, vence sua "doença", faz com que o menino veja a sí mesmo e descubra que ele não cabe mais naquele lugar, assegurando, assim, a possibilidade de transcedência.

O trecho a que se refere Magna é do conto Miguilim, publicado originalmente no livro Corpo de Baile, do médico, diplomata e escritor João Guimarães Rosa, mais conhecido por sua obra-prima Grande Sertão: Veredas.

Dia do médico

Só para lembrar que hoje é o Dia do Médico.

A escultura ao lado é de Asclépio, ou Esculápio, o Deus da Medicina. Ela faz parte da Coleção do Museu Pergamon de Berlim, atualmente em exposição no Museu de Arte Brasileira da FAAP, em São Paulo.

Fica a sugestão de visitar a exposição de arte greco-romana, especialmente para quem está planejando ir à 27a. Bienal Internacional de Arte de São Paulo, uma apologia ao grotesco, ao bizarro e à escatofilia. Para conhecer um pouco mais da coleção, clique na figura de Asclépio.

E pra não ficarmos apenas com o lado glamuroso da data, aproveito a oportunidade para sugeir ao leitor - especialmente quem for também médico ou estudante de medicina - a leitura de uma reflexão sobre os médicos e a morte, recentemente publicada no Floripa Total.

18 outubro 2006

Cabeceira

  • Uma história dos povos árabes. Albert Hourani. Professor de Oxford, falecido em 1993, conta a história das regiões de língua árabe desde o surgimento do Islã, no século VII, até o final da década de 1970. Uma obra de referência para a compreensão da origem dos conflitos mundiais que vivemos no presente.
  • Dois irmãos. Milton Hatoum. O autor, nascido em Manaus, recebeu o Prêmio Jabuti de 2001 por este romance, no qual relata a trajetória de uma família de origem libanesa, repleta de sensualidade, relações incestuosas e rivalidades, sobretudo entre os dois irmãos gêmeos protagonistas. O livro, cujo enredo remete o leitor ao romance de Machado de Assis, Esaú e Jacó, vem sendo traduzido a vários idiomas, e muito bem acolhido em outros países. Esta releitura confirma a boa impressão que provocou há dois anos, quando o lí pela primeira vez.
  • Os porcos-espinhos de Schopenhauer: a intimidade e seus dilemas. Cinco histórias de psicoterapia. Deborah Anna Luepnitz. Cinco relatos de psicoterapia, em que a autora, que é professora da Faculdade de Medicina da Universidade da Pensilvania, mostra uma rara capacidade de integrar recursos técnicos e teóricos provenientes da matriz psicanalítica com aqueles de extração mais sistêmica.
  • Saturno nos trópicos: a melancolia européia chega ao Brasil. Moacyr Scliar. O prolífico autor gaúcho, médico por formação, faz uma breve história da melancolia, que engloba a Antiguidade Clássica, a Renascença, e o Brasil na transição para a modernidade. A partir das expressões artísticas e principalmente literárias (nas obras de Machado de Assis e Lima Barreto, por exemplo), Scliar analisa os aspectos melancólicos da cultura brasileira.
  • Somos todos criminosos e desonestos? Um estudo sobre a delinqüência. Francisco Baptista Neto. Enquanto Scliar se pergunta se somos todos depressivos, Francisco Baptista se pergunta se somos todos delinqüentes... Chico, como é conhecido por amigos e pacientes este médico psiquiatra e psicoterapeuta de Florianópolis, escreveu um livro que chega em boa hora, e que desveste a sociedade de algumas de suas crenças mais hipócritas, expondo pequenas e grandes desonestidades que fazem parte do cotidiano de todos nós.

17 outubro 2006

Os beijos




À esquerda, uma foto da famosa escultura O Beijo, de Rodin. Se você tiver mais de 40 anos de idade, e for do sexo masculino, provavelmente irá reconhecer no desenho ao lado o traço indefectível de Carlos Zéfiro. Parece que até Rodin andou folheando as revistinhas do mestre Zéfiro (ou seria vice-versa?...)

QUEM FOI CARLOS ZÉFIRO (aqui):
Durante os anos 1960, através de centenas de livretos que circulavam clandestinamente pelos quatro cantos do país, um genial autor que permaneceu anônimo por quase 40 anos conseguiu traçar o mais perfeito painel da vida sexual dos brasileiros naqueles anos de repressão.
Vitimado pela concorrência desleal das multinacionais da literatura erótica, ele desapareceu no início dos anos 1970 e somente agora foi redescoberto pelo público e pela crítica, que passaram a ver em suas histórias algo mais do que simples sacanagem.

Texto extraído da quarta capa do livro "O quadrinho erótico de Carlos Zéfiro" de autoria de Otacílio d'Assunção.


15 outubro 2006

Os vínculos de reconhecimento (I)

Ora, mesmo para si mesmo fulano tem tantas realidades quantos são os seus conhecidos, porque comigo ele se conhece de um modo e, com vocês e com terceiros, de outro, e assim por diante, embora permaneça a ilusão – especialmente nele – de ser um só para todos. (Luigi Pirandello, Um, nenhum e cem mil)

O “indivíduo” é mesmo um ser independente e autônomo, como nos acostumamos a pensar a respeito de nós mesmos? Será que o indivíduo, como a palavra sugere, é realmente uno e indivisível? Estas duas questões nos remetem a outras, entre as quais a mais importante para este artigo (e os próximos) é: em que bases se constrói o núcleo da identidade pessoal, ou seja, o conjunto de características que fazem de nós o que somos, ou o que pensamos ser?
A identidade, de fato, é resultante do entrecruzamento de múltiplas vertentes e não pode ser separada dos processos de interação humana em seus vários níveis: as identificações que se iniciam no contexto familiar; as trocas simbólicas que ocorrem nas vivências cotidianas e que são diferentes em cada cultura particular; e as forças de agrupamento e coesão provenientes das religiões, dos partidos políticos, da noção de “raça” e de nacionalidade, etc.
A concepção ocidental de indivíduo, de pessoa humana, tem suas origens na Grécia Antiga. Mesmo quem não tenha muita familiaridade com a filosofia já ouviu a famosa frase atribuída erroneamente a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo!” Apesar de não ter sido ele quem primeira pronunciou estas palavras, que se encontravam no portal do Oráculo de Delfos, é certo que Sócrates foi um dos primeiros filósofos a se ocupar dessa questão, ao afirmar que a autonomia da pessoa e da consciência individual é a base para o comportamento ético. Ou seja, cada um é individualmente responsável por seus atos e suas escolhas.
Bem mais adiante, Santo Agostinho retomou problemas tais como o que é a pessoa? e o que sou eu?, mas suas reflexões não prosperaram no contexto da Idade Média, no período do Escolasticismo, quando a Igreja impôs a visão de que tudo estava pré-estabelecido por vontade divina, e que não nos cabia questionar sobre a natureza humana.
Somente com o advento da Renascença (ou seja, o re-nascimento) e da Reforma Protestante, a partir do século XVI, foi retomada a busca por respostas sobre a natureza da condição humana. Exemplos disto são, no campo da filosofia, a conclusão de Descartes: “penso, logo existo!”, e no campo das artes, a não menos conhecida pergunta de Shakespeare: “ser ou não ser?” No entanto, pelo menos três séculos se passariam entre esse novo alento e o surgimento da uma ciência dedicada a desvendar os segredos da subjetividade humana, ou seja, a Psicologia.
Na virada do século XX, William James, um dos pais da Psicologia, propôs uma teoria sobre a identidade, segundo a qual o “eu” não é único, mas divide-se em três partes: o material, o espiritual e o social. No conceito de eu material estão incluídos, além do próprio corpo, todas as posses do indivíduo, materiais ou afetivas. O conceito de eu espiritual refere-se ao conjunto de valores intelectuais, morais e religiosos. E o eu social é constituído a partir do reconhecimento que cada um obtém dos outros. Em última instância, um indivíduo tem, ao mesmo tempo, “tantos eus” quantas são as pessoas que o conhecem, pois cada uma o vê de uma maneira diferente. Além disto, uma pessoa não se mostra de forma igual nos diferentes contextos dos quais participa, uma vez que, de acordo com as circunstâncias, ela tenta responder a diferentes expectativas e desempenha diferentes papéis sociais.
Outro psicólogo norte-americano, George Mead foi um dos primeiros a assinalar a importância das identificações do indivíduo com os “outros significativos”, ou seja, as pessoas mais importantes à sua volta, como um fator fundamental para a construção da identidade pessoal. Ele também reconheceu na linguagem o veículo primordial desse processo. Mais ou menos na mesma época, Sigmund Freud afirmava que a identificação do bebê com os seus pais inicia-se já em fases muito precoces de sua existência, permanecendo como a base do que virá a ser, no futuro, a sua personalidade. Neste sentido, a psicologia individual é sempre uma psicologia social, já que todos nós trazemos dentro de nós, principalmente num nível inconsciente, as representações das figuras importantes que nos constituem.
Entre os continuadores da obra de Freud, muitos autores enfatizaram a importância das relações “primitivas” da mãe com o bebê para a formação da personalidade e para a constituição de um núcleo de identidade bem consistente. Todos, de uma forma ou de outra, vêem no reconhecimento (dos pais, dos outros significativos, da sociedade) o cimento indispensável para a construção de um forte senso de identidade pessoal. (A ser continuado...)