24 outubro 2006

70 anos de "RAÍZES DO BRASIL"


O livro "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, completa 70 anos de sua primeira edição. O pai de Chico Buarque deu ao Brasil mais do que um filho genial; deixou um dos tratados sociológicos mais importantes para a compreensão da brasilidade, de algo que poderia ser chamado de um "caráter nacional". Por isto, ainda que eu não seja sociólogo de formação, assumo a tarefa de lembrá-lo.
Sérgio Buarque de Holanda chamou a atenção para o fato de que, no Brasil, os âmbitos do privado e do público nunca forarn muito claramente demarcados, como herança de uma forte cultura familiar patriarcal e rural. No Brasil colonial (e, infelizmente, ainda hoje, em grande medida), os laços familiares tiveram um grande peso, impondo-se com muita força sobre a impessoalidade e neutralidade das relações que caracterizam a sociedade urbana e burguesa. Aqui não assistimos o surgimento de mecanismos sociais que deveriam regular, como acontece nas sociedades capitalistas modernas, a livre iniciativa e as condições de concorrência entre as pessoas, no âmbito público.
Foi Sérgio Buarque que definiu o brasileiro como o "homem cordial". O termo não se refere a alguém intrinsecamente bom, ou necessariamente bondoso, mas a alguém que leva mais em conta os sentimentos do que as regras neutras da convivência social. A aversão do brasileiro às formalidades e aos rituais da convivência social impessoal é característica de sua "cordialidade". No Brasil, as fórmulas sociais são admitidas apenas até um certo ponto, havendo uma clara tendência a se estabelecer modos mais familiares, mais íntimos, e mais descontraídos de tratamento. O abuso de diminutivos e apelidos, assim como o costume de tratar a todos pelo primeiro nome, são manifestações de nossa cordialidade. Em Florianópolis, por exemplo, telefonistas chamam o cliente de "querido" sem nunca tê-lo visto, e a pessoa a quem você pediu informações na rua se dirige a você como "amigo".
Existe no Brasil a oposição de uma mentalidade citadina e cosmopolita à mentalidade regional e paroquial, que Sérgio Buarque associa, assim como o fez Joaquim Nabuco, à herança da escravidão em nosso país. Ao contrário das sociedades europeias, outra lógica caracterizou a formação da burguesia no Brasil. Lá, assim como na América do Norte, predominou a ética do protestantismo, com a valorização do trabalho individual como caminho para a salvação das almas. Aqui, a compra de indulgências, a comodidade paralisante de uma economia extrativista e escravocrata, e a casa grande como centro de poder. Lá, uma clara separação entre o público e privado. Aqui, a prevalência do que é emocional, passional, e irracional (como tudo o que rege o âmbito privado da vida) por sobre as qualidades ordenadoras, disciplinadoras e racionalizadoras das sociedades modernas.
Atrevo-me a cogitar que o famoso "jeitinho" brasileiro seja uma das manifestações dessa nossa "cordialidade", ou uma de suas contra-faces, e que compartilhe das mesmas origens. Esse jeitinho que, em muitos contextos, pode ser uma forma sutil e incipiente de corrupção; dessa corrupção endêmica que assola nosso país. Esse jeitinho que faz parte de uma cultura da malandragem, que o antropólogo Roberto DaMatta caracteriza como "um modo de navegação social tipicamente brasileiro" (embora este autor lhe atribua uma conotação menos negativa do que a que estou dando).
Raízes do Brasil inaugurou uma forma de análise social capaz de pensar os processos econômicos e políticos como fenômenos da cultura. Sérgio Buarque de Holanda mostra que a facilidade no trato e a hospitalidade de que tanto nos gabamos, "representam, corn efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar boas maneiras ou civilidade".
Sempre é conveniente reler Raízes do Brasil para nos lembrarmos da tarefa que temos ainda pela frente: construir um país em que a nossa cordialidade possa fecundar, na forma de cortesia e generosidade, os modos formais das trocas sociais, inerentes à necessária separação do público e do privado; e no qual o jeitinho possa ser apenas sinônimo da nossa criatividade e engenhosidade na solução dos tantos problemas que temos.
Publicado originalmente no Floripa Total de Julho-Agosto de 2006

Nenhum comentário: