24 abril 2007

Sobre linhas & redes

Ainda a propósito do tema tratado no post abaixo: publiquei na edição 11 do jornal Floripa Total (link ao lado), em novembro de 2005, um texto no qual já antecipava algumas idéias (ou pelo menos, alguns pressupostos) que viria a encontrar nos dois livros que resenho no post anterior. Considerei interessante reproduzir aqui o artigo, para quem se interessar mais sobre o tema:

Vivem me perguntando: “qual é a sua linha?” Aliás, esta é uma pergunta que os psiquiatras e psicólogos têm de responder o tempo todo. Há que se ter uma linha, fazer parte de uma escola, nem que seja pra ter uma resposta para os curiosos... Na verdade, vulgarizou-se o conceito de que existem diferentes abordagens terapêuticas, e que algumas são inclusive incompatíveis entre si. Os freudianos não são junguianos, e estes não são lacanianos, que por sua vez não gostam dos kleinianos, e nenhum destes haveria de gostar dos cognitivistas que, podem até se entender com os sistêmicos, mas se dão melhor ainda com os psiquiatras, e não sei mais o quê...
Vou aproveitar esta oportunidade pra esclarecer duas coisas: a primeira é que sou filho (e trago isto no nome) de meus pais, e isto já me basta! Portanto, não esperem me ver afiliado a qualquer outra coisa, como partidos políticos, igrejas, ou outras organizações que requeiram comprometimento com dogmas teóricos ou ideológicos. A segunda, que é conseqüência do que acabo de dizer, é que não tenho “linha”! Eu prefiro andar fora da linha mesmo... (salvo, é importante que se ressalve, a linha da conduta ética e do respeito ao próximo).
Na verdade, dizer-se freudiano ou gestáltico pouco informa a quem pergunta. As diferenças, para quem vê de fora, são às vezes tão sutis que pouca ou nenhuma diferença fazem. Até porque praticamente não há como ser psicoterapeuta sem ser “freudiano”, uma vez que foi Freud quem pela primeira deu um arcabouço teórico e forneceu uma sistematização técnica para a psicoterapia. Assim, quer queiramos – ou saibamos – ou não, somos todos freudianos! O que existe de fato são diferentes formações pelas quais cada terapeuta passa.
Eu, por exemplo, além de ser psiquiatra e especialista em saúde pública, fiz uma formação em psicoterapia de orientação psicanalítica, e depois outra, em terapia familiar sistêmica. Junte-se a isto um mestrado em psicologia e um doutorado em ciências humanas, e você talvez tenha (apenas) alguns indicadores do tipo de psicoterapia que eu pratico. E assim é com todo mundo! O que existe mesmo, nada mais é do que “a psicoterapia que cada um pratica”.
Ao invés de linhas, eu prefiro pensar em redes. O conceito de rede está mesmo em voga, já que se diz que estamos vivendo numa sociedade de redes, que as organizações verticais dão lugar às organizações em rede, e que o fenômeno cultural – de amplas implicações econômicas – de maior importância na nossa era é a Internet: a rede mundial de computadores. Pois eu prefiro pensar que a terapia que faço é um terapia de rede: uma rede tecida com todas as linhas (psicológicas, ideológicas, científicas, etc.) que influenciaram a minha formação pessoal e a minha experiência profissional.
Faço terapia de rede também porque só consigo pensar as pessoas em seus contextos de relação, no interior de suas redes sociais. Isto pode ou não significar a inclusão de outras pessoas em algum momento de uma terapia individual, ou mesmo sugerir uma terapia de casal ou família. Cada terapia é um encontro único, entre o psicoterapeuta e uma pessoa com história, personalidade, necessidades e recursos diferentes.
Desde que o profissional tenha um bom treinamento e alguma experiência, ele haverá de identificar quais são os limites e as possibilidades de cada caso, e em cada momento de uma mesma terapia, e a melhor estratégia terapêutica. É a estratégia terapêutica que nos vai sugerir variações quanto ao número de sessões; quanto à atitude do terapeuta, no sentido de ser mais ou menos ativo; quanto a ser uma terapia mais ou menos diretiva, mais centrada no apoio, no esclarecimento e na orientação, ou, por outro lado, mais voltada ao descobrimento interior (o insight) por parte do próprio paciente, com o terapeuta “apenas” tendo a função de ser um formulador de boas perguntas...
O ser humano é por demais complexo para que uma única “linha”, ou seja, um único modelo, dê conta de abarcar todos os aspectos da vida mental e emocional. Por outro lado, é claro que não se pode aspirar a resolver tudo ao mesmo tempo: isto seria onipotência do terapeuta. O ideal é que, estando bem alicerçado no seu treinamento e em sua experiência profissional, o terapeuta possa combinar os recursos necessários para a compreensão dos dinamismos internos (em geral inconscientes); dos jogos relacionais (especialmente daqueles que ocorrem no contexto familiar); dos aprendizados e das respostas automáticas, muitas vezes disfuncionais; das forças da cultura (no sentido daquilo que é ou deixa de ser normal em cada diferente meio social); assim como das predisposições genéticas e constitucionais de cada indivíduo.
Não parece pouco... e tampouco é!!! Portanto, quando estiver procurando um psicoterapeuta, mais importante do que saber qual a linha, tente descobrir quem é ele, qual a sua formação profissional, como foram as experiências de outros pacientes. É só assim que você vai encontrar – e nem sempre é da primeira vez – alguém cuja terapia seja aquela que você está precisando. Boa sorte!

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2 comentários:

Anônimo disse...

CARO ERCY, VOCÊ ACABA DE TIRAR UMA DAS MINHAS MAIS ANTIGAS DÚVIDAS; SEMPRE TIVE DIFICULDADE DE CONVIVER COM ESSES RÓTULOS ENTRE OS DIVERSOS PSIQUIATRAS. TALVEZ ATÉ POR INTUIR OS POSTULADOS QUE ACABO DE LER EM SEU BELO ARTIGO. QUEIRA ACEITAR MEU APLAUSO E A CERTEZA DE QUE ESSA LEITURA IRÁ ESCLARECER MUITA GENTE, SOBRETUDO SEUS POSSÍVEIS PACIENTES. GRANDE ABRAÇO. MaGenCo

Ercy Soar disse...

Que tenha esclarecido alguma coisa pra vc, meu caro amigo, já justifica plenamente a publicação do texto. Gd abraço.