15 outubro 2006

Os vínculos de reconhecimento (I)

Ora, mesmo para si mesmo fulano tem tantas realidades quantos são os seus conhecidos, porque comigo ele se conhece de um modo e, com vocês e com terceiros, de outro, e assim por diante, embora permaneça a ilusão – especialmente nele – de ser um só para todos. (Luigi Pirandello, Um, nenhum e cem mil)

O “indivíduo” é mesmo um ser independente e autônomo, como nos acostumamos a pensar a respeito de nós mesmos? Será que o indivíduo, como a palavra sugere, é realmente uno e indivisível? Estas duas questões nos remetem a outras, entre as quais a mais importante para este artigo (e os próximos) é: em que bases se constrói o núcleo da identidade pessoal, ou seja, o conjunto de características que fazem de nós o que somos, ou o que pensamos ser?
A identidade, de fato, é resultante do entrecruzamento de múltiplas vertentes e não pode ser separada dos processos de interação humana em seus vários níveis: as identificações que se iniciam no contexto familiar; as trocas simbólicas que ocorrem nas vivências cotidianas e que são diferentes em cada cultura particular; e as forças de agrupamento e coesão provenientes das religiões, dos partidos políticos, da noção de “raça” e de nacionalidade, etc.
A concepção ocidental de indivíduo, de pessoa humana, tem suas origens na Grécia Antiga. Mesmo quem não tenha muita familiaridade com a filosofia já ouviu a famosa frase atribuída erroneamente a Sócrates: “conhece-te a ti mesmo!” Apesar de não ter sido ele quem primeira pronunciou estas palavras, que se encontravam no portal do Oráculo de Delfos, é certo que Sócrates foi um dos primeiros filósofos a se ocupar dessa questão, ao afirmar que a autonomia da pessoa e da consciência individual é a base para o comportamento ético. Ou seja, cada um é individualmente responsável por seus atos e suas escolhas.
Bem mais adiante, Santo Agostinho retomou problemas tais como o que é a pessoa? e o que sou eu?, mas suas reflexões não prosperaram no contexto da Idade Média, no período do Escolasticismo, quando a Igreja impôs a visão de que tudo estava pré-estabelecido por vontade divina, e que não nos cabia questionar sobre a natureza humana.
Somente com o advento da Renascença (ou seja, o re-nascimento) e da Reforma Protestante, a partir do século XVI, foi retomada a busca por respostas sobre a natureza da condição humana. Exemplos disto são, no campo da filosofia, a conclusão de Descartes: “penso, logo existo!”, e no campo das artes, a não menos conhecida pergunta de Shakespeare: “ser ou não ser?” No entanto, pelo menos três séculos se passariam entre esse novo alento e o surgimento da uma ciência dedicada a desvendar os segredos da subjetividade humana, ou seja, a Psicologia.
Na virada do século XX, William James, um dos pais da Psicologia, propôs uma teoria sobre a identidade, segundo a qual o “eu” não é único, mas divide-se em três partes: o material, o espiritual e o social. No conceito de eu material estão incluídos, além do próprio corpo, todas as posses do indivíduo, materiais ou afetivas. O conceito de eu espiritual refere-se ao conjunto de valores intelectuais, morais e religiosos. E o eu social é constituído a partir do reconhecimento que cada um obtém dos outros. Em última instância, um indivíduo tem, ao mesmo tempo, “tantos eus” quantas são as pessoas que o conhecem, pois cada uma o vê de uma maneira diferente. Além disto, uma pessoa não se mostra de forma igual nos diferentes contextos dos quais participa, uma vez que, de acordo com as circunstâncias, ela tenta responder a diferentes expectativas e desempenha diferentes papéis sociais.
Outro psicólogo norte-americano, George Mead foi um dos primeiros a assinalar a importância das identificações do indivíduo com os “outros significativos”, ou seja, as pessoas mais importantes à sua volta, como um fator fundamental para a construção da identidade pessoal. Ele também reconheceu na linguagem o veículo primordial desse processo. Mais ou menos na mesma época, Sigmund Freud afirmava que a identificação do bebê com os seus pais inicia-se já em fases muito precoces de sua existência, permanecendo como a base do que virá a ser, no futuro, a sua personalidade. Neste sentido, a psicologia individual é sempre uma psicologia social, já que todos nós trazemos dentro de nós, principalmente num nível inconsciente, as representações das figuras importantes que nos constituem.
Entre os continuadores da obra de Freud, muitos autores enfatizaram a importância das relações “primitivas” da mãe com o bebê para a formação da personalidade e para a constituição de um núcleo de identidade bem consistente. Todos, de uma forma ou de outra, vêem no reconhecimento (dos pais, dos outros significativos, da sociedade) o cimento indispensável para a construção de um forte senso de identidade pessoal. (A ser continuado...)

Um comentário:

Anônimo disse...

Ercy,

Adoro seu blog mesmo!

Volto outro dia NOS post E NESTE.Observei a formação da personalidade do meu bebê, hoje adulto e lhe digo, tive sorte, de ter podido viver todos os momentos, da evolução com a idade que vai passando e lhe garanto tudo hoje na personalidade vi nos primeiros dias do berço.

Volto por aqui e desculpe se não saio muito do seu blog!