31 janeiro 2007

(L)ula-lá!!!!


Essa doeu!
O Lula, entre outras tantas, virou um pródigo presidente, que faz gentilezas com o chapéu dos outros (NÓS). Desta vez, vinte milhões de reais. Pra quem? Pro Paraguai! Assim, de lambuja! Pura generosidade!!! É um caso de populismo transnacional. Será competição com o Chavez?
Está aí, na Veja desta semana. Para ler a notícia melhor, clique a imagem para ampliá-la. E como só mesmo vendo para crer, aqui está o link para o lei da doação.

30 janeiro 2007

Bico de pena


Técnica: pena de bambu e nanquim sobre papel. Não aparece a data mas é de 1986.

desenho anterior


29 janeiro 2007

Projeto

Este é o início de uma promissora história que continua aqui.

Samba em prelúdio

Baden Powell e Vinícius de Moraes

Eu sem você não tenho porquê
Porque sem você não sei nem chorar
Sou chama sem luz, jardim sem luar
Luar sem amor, amor sem se dar

Em sem você sou só desamor
Um barco sem mar, um campo sem flor
Tristeza que vai, tristeza que vem
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

Ah, que saudade
Que vontade de ver renascer nossa vida
Volta, querida
Os meus braços precisam dos teus
Teus braços precisam dos meus

Estou tão sozinho
Tenho os olhos cansados de olhar para o além
Vem ver a vida
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém
Sem você, meu amor, eu não sou ninguém

Mas eu olhava


Mas eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido. Escondido enrolei minha sacola, aí tanto, mesmo em fé de promessa, tive vergonha de estar esmolando. Mas ele apreciava o trabalho dos homens, chamando para eles meu olhar, com um jeito de siso. Senti, modo meu de menino, que ele também se simpatizava a já comigo. (João Guimarães Rosa)


28 janeiro 2007

Riscos à segurança ontológica

[...] a própria existência de Zelig é uma não-existência. Desprovido de personalidade, com suas qualidades humanas há muito perdidas no ocaso da vida, ele está sentado, sozinho, encarando em silencio o espaço; um número, um ninguém, um fenômeno em atuação. Ele, que só queria se encaixar, participar, passar desapercebido por seus inimigos, e ser amado; nem se encaixa, nem participa. (

Woody Allen, no filme Zelig)

Já mencionei em várias ocasiões os desafios à segurança ontológica do indivíduo contemporâneo. Nas condições de vida das sociedades urbanas contemporâneas, a pessoa está submersa num mar de informações, modelos desencontrados, possibilidades alternativas, que a colocam em permanente confronto com suas próprias crenças e com os modelos de conduta que porventura já tenha internalizado. Encontra-se no estado de “multifrenia”, termo com o qual Gergen (1991) designa a condição humana nos contextos culturais da pós-modernidade: a identidade já não é vivenciada como una e estável, mas sim sujeita a uma multiplicidade de manifestações, por vezes díspares e inusitadas aos olhos de um observador externo. Em outras palavras, já não existe mais uma essência individual à qual a pessoa permanece fiel ou comprometida, mas “a identidade é continuamente emergente, re-formada e redirecionada na medida em que a pessoa se move num mar de relacionamentos em constante mudança” (p. 139).
Assim como no filme Celebridade, de Woody Allen, os cenários mudam, e as personagens assumem novos papéis sociais numa velocidade estonteante: um repórter que ora se encontra envolvido no meio cinematográfico, ora nos círculos da alta moda, ora num teatro underground de Nova York; a esposa traída que subitamente se vê alçada à condição de celebridade da televisão... Todas as possibilidades estão abertas, a identidade passa a ser vista como potencialidade, virtualidade, possibilidade permanente de expressão de uma subjetividade multifacetada e contextual.
A falta de referentes estáveis de tempo e espaço, o rompimento com as tradições culturais e a perda do papel modelador e moderador da autoridade religiosa, expõem a indivíduo ao desafio de manter um frágil equilíbrio entre o seu núcleo de identidade pessoal – do qual são parte importante as memórias que lhe dão a sensação de ser um só, apesar de tantos – e as virtualidades, os simulacros, as novas formas de organização social.
Os pilares sobre os quais a noção de identidade era tradicionalmente construída - entre os quais a racionalidade e a coerência interna – estão sob a ação de permanente corrosão. Mais do que isso, perdem força os modelos culturalmente estabelecidos sobre “aquilo que se deve ser”. A expressão psicopatológica deste fenômeno é “personalidade pastiche”, o típico camaleão social, sempre buscando conformar-se ao seu entorno, inseguro de manter características que não sejam consensuais com a do grupo social. A personalidade pastiche, tão bem representada em Zelig, outro filme de Woody Allen, vê-se imersa num mundo em que já não há referenciais seguros quanto aos modelos de conduta, os padrões estéticos, ou os balizamentos éticos da convivência social.
Até que ponto estamos preparados para acompanhar os processos de mudanças na formas de organização social e de representação do mundo e do ser humano? Não estaríamos todos sujeitos aos efeitos de um descompasso entre a nossa capacidade cognitiva e emocional de elaborar todas essas mudanças, e a velocidade com a qual ocorrem? Não seria de se supor que nosso aparato cognitivo esteja ainda condicionado a pensar com as referências relativamente estáveis e seguras das sociedades tradicionais? E a ciência, está ela preparada para construir modelos teóricos interdisciplinares que dêem conta da complexidade da condição humana e das vicissitudes da vida na sociedade contemporânea?

Aqui aparece o termo "multifrenia", que de certa forma inspirou o nome deste blog.
Na foto, Woody Allen como Zelig, metamorfoseado em índio americano.

27 janeiro 2007

Contagem regressiva

Faltam 37 dias para o cinquentenário!

O apanhador


Conselho de um professor a um adolescente confuso:


Na hora em que você conseguir deixar pra trás todos os Professores Vinsons, você vai começar a se aproximar cada vez mais - isto é, se você quiser, e se procurar, e se tiver paciência de esperar - da espécie de conhecimento que será muito, muito importante para você. Entre outras coisas, você vai descobrir que não é a primeira pessoa a ficar confusa e assustada, e até enojada, pelo comportamento humano. Você não está de maneira nenhuma sozinho nesse terreno, e se sentirá estimulado e entusiasmado quando souber disso. Muitos homens, muitos mesmo, enfrentam os mesmos problemas morais e espirituais que você está enfrentando agora. Felizmente, alguns deles guardaram um registro de seus problemas. Você aprenderá com eles, se quiser. Da mesma forma que , algum dia, se você tiver alguma coisa a oferecer, alguém irá aprender alguma coisa de você. É um belo arranjo recíproco. E não é instrução. É história. É poesia.

Em O apanhador no campo de centeiro, de J.D. Salinger.

25 janeiro 2007

Reunião de bambas


Ilustração publicada na Veja desta semana.
Sobre os encontros de grandes escritores na livraria e editora José Olympio, entre as décadas de 30 e 50.
No desenho, da esquerda para a direita, Sérgio Buarque de Holanda, José Olympio, Jorge Amado, José Lins do Rego, Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade.
Para variar um pouco, o editor pediu um desenho a traço.
Gostei do resultado. Acho que deu leveza à página.

Título, ilustração e texto publicados no dia 04/12/06, no blog do Baptistão, sensacional ilustrador com trabalhos publicados em vários jornais e revistas importantes. Vale a pena visitar!

24 janeiro 2007

A vingança da inépcia

Olavo de Carvalho

Aviso chocante a uma nação estupefata: o a craseado não é nenhuma monstruosidade abominável, é apenas o feminino da contração “ao”. É o equivalente de “aa”, onde o primeiro “a” significa a preposição “a” (ou “para”) e o segundo o artigo definido “a”. Quem quer que leve mais de dois segundos para entender isso e mais de três para aprender a aplicá-lo corretamente é um retardado mental, incapacitado para o exercício da cidadania adulta. Deve ser imediatamente destituído de qualquer função pública e entregue aos cuidados do INSS antes que faça alguma besteira perigosa.
Infelizmente, no Brasil, a quase totalidade dos parlamentares e governadores de Estado se inclui nessa classificação junto com o sr. Presidente da República e uma infinidade de jornalistas, professores universitários, oficiais de alta patente, juízes de direito, empresários e doutores em geral.
O acento grave destina-se a indicar uma contração preposicional que sem ele teria de ser adivinhada. Acreditar que pessoas incapazes de perceber essa contração com a ajuda do acento haveriam de apreendê-la mais facilmente sem ele é uma espécie de otimismo às avessas, bem característica de boçais inaptos para imaginar mesmo as hipóteses mais simples e óbvias da vida. Aqueles que se confessam humilhados pela crase não atinam com os abismos de humilhação e confusão a que a ausência dela os jogaria perante uma frase como: “Não envie à polícia.” Suprimam o acento grave e me digam se algo não deve ser enviado à polícia ou se a polícia não deve ser enviada a algum lugar. Nem o parlamento inteiro, reunido em sessão extraordinária permanente e empanturrado de jetons, poderia tirar essa dúvida.
Isso não quer dizer que a proposta de abolição da crase não tenha nenhum sentido. Ela tem um profundo sentido político, tanto que provém do mesmo partido que advoga a substituição dos exames vestibulares por sorteios, onde o acesso ao ensino superior será aberto igualitariamente aos capacitados e aos incapacitados, compensando por meio da ação estatal a injusta distribuição do QI entre os cidadãos. Ainda do mesmo partido provieram idéias como o salário mínimo vitalício, pago desde o berço talvez como compensação pelo destino cruel de nascer brasileiro, e a “poupança fraterna”, que nivelará por baixo os ganhos de todos, instaurando a distribuição igualitária da pobreza.
A inspiração comum de todos esses projetos de lei é o ódio radical dos complexados, burros, preguiçosos e incapazes às pessoas normais, saudáveis, diligentes e estudiosas. É o ressentimento da inépcia contra a capacidade, é a vingança do demérito contra o mérito. Isso faz muito sentido, faz sentido até demais: é a razão de ser do próprio PT.

Recebido de MaGenCo
Publicado originalmente no jornal Diário do Comércio.
Ilustração: Céllus

MEU COMENTÁRIO:

Embora concorde com as críticas de fundo à absurda proposta (note-se a importância da crase na frase!), motivo pelo qual transcrevo aqui o artigo, não subscrevo as generalizações hostis que o artigo contém, muito menos a subliminar sugestão feita na ilustração, associando a perplexidade frente à crase à "raça" negra (mais crases!). O mérito do artigo está em colocar a proposta no contexto geral de outras idéias, defendidas pelo governo ou por sua base de sustentação, como as cotas por cor da pele, o sorteio de vagas, e projeto de lei do deputado Aldo Arantes, apresentado antes de ser presidente da Câmara, de proibir qualquer palavra inglesa ou anglicismo na língua portuguesa, como se a evolução de um idioma vivo pudesse ser controlada (uma palavra chave!) pela legislação. Felizmente, tal proposta parece ter sido deletada (assim mesmo, do verbo deletar!) ou pelo menos engavetada, já que nunca se sabe!.. Quando deixar de ser presidente da Camara, talvez Aldo Rebelo queira se ocupar dela novamente.

23 janeiro 2007

Mil e uma visitas

Coincidência ou não (veja posts anteriores), hoje ocorreu a milésima visita ao meu blog - e a milésima primeira também - desde que passei a contabilizar os acessos, em meados de novembro, quando já fazia cerca de um mês da sua criação.
Dessas, grande parte é resultante de buscas ocasionais ou de acessos não intensionais, ou seja, não corresponde a uma "visita" propriamente dita. Mas, não deixa de ser um número emblemático (!!!). Aos que efetivamente me dão a honra da atenção e dos comentários, agradeço sinceramente.

As mil e uma noites (3)

Para concluir este tema, compartilho com vocês um achado. Entre as páginas de minha edição de Sete Noites, encontro um amarelecido recorte de jornal. Trata-se de um artigo do caderno Ilustrada, da Folha de São Paulo, com data de 11 de junho de 1985, uma terça-feira, como hoje. A notícia é apenas o mote para que o autor (identificado apenas pelas iniciais S.A.) faça um competente história do livro, com muitos detalhes sobre as suas múltiplas traduções. É o seguinte o resumo da ópera: no Cairo, as autoridades flexibilizaram a legislação mulçumana para permitir a abertura de uma filial da famosa boate Regine's; ao mesmo tempo em que proibiram a publicação de As Mil e Uma Noites, por considerarem intolerável o conteúdo erotizado do livro. No Cairo, a terra onde o livro ganhou sua roupagem árabe! Jornal antigo é bom por isso. Dá uma sensação de que o tempo não passou!

22 janeiro 2007

As mil e uma noites (2)

ou The Arabian Nights

Impossível, para mim, falar de As Mil e Uma Noites sem lembrar de Jorge Luis Borges, que tinha este livro como um de seus prediletos, e fez dele tema de muitos ensaios e contos. Em 1977 Borges proferiu uma série de sete conferências no Teatro Coliseo de Buenos Aires, e dedicou a terceira delas a As Mil e Uma Noites (as demais foram, respectivamente, a Divina Comédia, o pesadelo, o budismo, a poesia, a cabala e a cegueira). As conferências foram editadas num volume intitulado Siete Noches. Por que este incansável contador de histórias teria preferido chamar o conjunto de suas conferências precisamente de sete noites?
O aporte de Borges é bastante diverso daquele de Rushdie (ver post anterior). Enquanto este parte da obra para levantar questões que poderiam ser caracterizadas como uma crítica ao autoritarismo e ao machismo, o autor argentino mantém o seu estilo clássico, fazendo um passeio pelas inúmeras associações periféricas que a obra suscita.
É assim que Borges inicia sua preleção:

Senhoras e senhores:

O descobrimento do Oriente foi um acontecimento capital na história das nações ocidentais. Seria mais exato falar de uma contínua consciência do Oriente, comparável à presença da Pérsia na história grega. Além dessa consciência do Oriente ser algo vasto, imóvel, magnífico e incompreensível, há momentos de culminância. Vou indicar alguns. Com isso, entraremos de maneira perfeitamente adequada num assunto que tanto amo desde minha infância: o Livro das mil e uma noites ou, como se chamou na versão inglesa (que li primeiro), The Arabian Nights, Noites árabes; no título inglês há também um certo mistério, ainda que seja menos belo do que Livro das mil e uma noites.

Enumero alguns fatos. Por exemplo, os nove livros de Heródoto, onde se faz a revelação do Egito, o distante Egito. Digo "distante" porque o espaço se mede pelo tempo, além de que as navegações eram muito arriscadas. Para os gregos, o mundo egípcio era maior. Eles o consideravam misterioso.

Mais tarde examinaremos as palavras Oriente e Ocidente, que não podemos definir as que são verdadeiras. Acontece com elas o que Santo Agostinho dizia sobre o tempo: "O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço". O que são o Oriente e o Ocidente? Se me perguntam, desconheço. Vamos procurar uma aproximação.

Com seu estilo absolutamente não linear, Borges vai mencionando os caminhos que marcaram a entrada no Oriente na cultura ocidental, passando pela influência que a Ilíada teria exercido sobre Alexandre da Macedônia; pelas referências feitas por Virgílio; e, mais adiante, os relatos de Marco Pólo. Tudo isso para chegar a outro objeto de deleite de Borges (e de seus leitores): o título! O título, diz ele, "é belo não só porque é lindo (como é lindo Os crepúsculos do jardim, de Lugones) mas também porque dá vontade de ler o livro.

Nesse título há uma beleza muito particular, talvez pelo fato de que a palavra "mil" seja para nós quase sinônimo de "infinito". Falar em mil noites é falar em infinitas noites - muitas e inumeráveis noites. Dizer "mil e uma noites" é acrescentar uma além do infinito. Há, em inglês, uma expressão curiosa. Muitas vezes, não se diz simplesmente for ever ("para sempre") mas for ever and a day ("para sempre mais um dia"). Ou seja, acrescenta-se um dia à palavra "sempre". Isso lembra a dedicatória que Reine fez a uma mulher: "Eu te amarei eternamente e ainda depois" .

Antes de relatar algumas das histórias que considera mais interessantes, Borges conta um pouco da história do livro e de suas traduções. Ela se inicia por volta do século XV, em Alexandria, com a compilação de uma série de contos que teriam sido depois relatados na Índia, depois na Pérsia, a seguir na Ásia Menor e, finalmente, acabaram sendo compilados no Cairo, já escritos em árabe. A primeira tradução européia aparece em 1704, com o primeiro dos seis volumes do orientalista francês Antoine Galland. Depois sucessivas edições e traduções fizeram com que se corroessem ainda mais as poucas certezas que sobre ele existiam. Não me deterei nos detalhes dessa aventura, que está narrada minuciosamente por Borges, a quem se pode facilmente recorrer. (Acima, a capa da edição brasileira de Sete Noites, de 1983, pela Editora Max Limonad. Deve haver alguma mais recente, e seguramente encontra-se o livro nas obras completas, já publicadas em português).
Para encerrar, quero recuperar da conferência de Borges uma passagem que me tocou profundamente:

A gente tem vontade de perder-se em As mil e uma noites, pois sabe que, se entrar nesse livro, é capaz de esquecer nosso pobre destino humano. Entrando nele, pode-se entrar num mundo que está repleto de figuras arquetípicas e de indivíduos também. No título de As mil e uma noites existe algo muito importante: a sugestão de que se trata de um livro infinito. E ele é, virtualmente. Os árabes dizem que ninguém pode ler As mil e uma noites até o fim. Não por tédio, mas porque se sente que o livro é infinito. Tenho em casa os dezessete volumes da tradução de Burton. Sei que nunca os lerei todos mas sei também que essas noites estão sempre à minha espera. Ainda que minha vida seja infeliz, os dezessete volumes aí estarão. Aí estará essa espécie de eternidade que são As mil e uma noites do Oriente.

Borges não está aqui falando apenas desse livro em particular, que é o seu preferido. Está falando de sua paixão pelos livros em geral, e assim toca o coração de todos aqueles que compartilham desse sentimento. Costumo dizer que a “maturidade” é aquilo que sentimos quando nos damos conta de que jamais conseguiremos ler toda nossa biblioteca... Borges diz o mesmo, com a diferença de que sabe dizê-lo com erudição e estilo, fazendo de As mil e uma noites o arquétipo de todos os livros.

As mil e uma noites



Sangue
ou um questionamento sobre As Mil e Uma Noites

SALMAN RUSHDIE

Então: Quantas mulheres eles realmente mataram, o rei, Shahryar, o grande rei sassânida da ilha ou península (jazira) da “Índia e China”, e seu irmão Shahzaman, monarca soberano de Samarcanda? Reza a lenda que tudo começou quando Shahzaman flagrou sua mulher nos braços de um cozinheiro do palácio, que era, acima de tudo, a) negro b) forte e c) gorduroso. Apesar desses atributos, ou justamente por causa disso, a rainha de Samarcanda se esbaldava, de modo que Shahzaman cortou os dois em pedacinhos, abandonou-os no leito de seus prazeres e se dirigiu à casa de seu irmão. Lá chegando, não muito tempo depois, acabou espiando, perto de uma fonte no jardim, sua cunhada, a rainha esposa de Shahryar, acompanhada por dez damas de companhia e dez escravos. Os vinte se entretinham em satisfações mútuas. A rainha, entretanto, chamou seu próprio amante, que desceu de uma árvore onde estava escondido. Ele era – pasmem! – a) negro b) forte e c) sentimental. Que diversão, os vinte e a rainha com seu “negão”! Ah, vai entender a malícia e a perfídia das mulheres e os inexplicáveis atrativos de negros feios, fortes e suados! Shahzaman contou a seu irmão o que tinha visto, levando todos, damas de companhia, escravos brancos e rainha, a encontrarem seu destino, pelas mãos do primeiro-ministro de Shahryar, seu vizir. O sentimental amante negro da rainha, ao que tudo indica, conseguiu fugir. Como explicar, se não, sua ausência na lista dos mortos?

Homem de sorte!

Muito bom o ensaio de S. Rushdie (o mesmo autor de Versos Satânicos, aquele que foi condenado a morte pelos aiatolás do Irã, lembra?)! Aí vão os dois primeiros parágrafos, mas vale a pena lê-lo inteiro (clique aqui). Na revista piauí, pra variar!

20 janeiro 2007

Chávez (uurgghhh!!!)

O chefe dos quadrúpedes

O ataque do presidente da Venezuela, Hugo Chávez, à imprensa brasileira, em especial ao jornal O Globo, é inaceitável. O bufão estava aqui como convidado e recebia uma homenagem — de resto, ridícula — na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (leia abaixo). Brandindo o jornal, protestava contra um texto que lembrava as óbvias incongruências entre o regime que ele comanda e os compromissos do Mercosul com a democracia.
Na galeria, um charabiá esquerdopata juntava zurrados, relinchos e urros, numa impressionante diversidade de quadrúpedes morais. O coronel — um chefe de Estado! — comandou pessoalmente uma vaia ao jornal. Seria uma atitude desrespeitosa também com o governo brasileiro, não fosse o presidente Luiz Inácio Lula da Silva seu aliado incondicional. Acho um engano da generosidade supor que possa haver alguma divergência importante entre o Apedeuta brasileiro e o milico venezuelano. Ao contrário: as relações entre os dois países só fazem se estreitar. Isso é estratégico. O resto é tático.Quando classifico o episódio de “inaceitável”, não estou me deixando mover por qualquer impulso corporativista — eu nem mais sou dono de revista, hehe... — ou por um sentimento, sei lá, parente do patriotismo. Isso é bobagem. Não devemos aceitar é que um ditador vagabundo, que censura a imprensa e ameaça jornalistas com a cadeia — num país em que Legislativo e Judiciário já passaram pela fagocitose autoritária —, venha lançar sua baba hidrófoba contra a imprensa de um país que vive plenamente a democracia, a despeito dos arreganhos autoritários do PT e das penas de aluguel.Sim, é o caso de se cobrar o pronunciamento do governo brasileiro — um dos fiéis depositários da Constituição, que assegura a liberdade de imprensa —, das entidades de classe dos jornalistas (quem quer apostar a mão que a Federação Nacional dos Jornalistas e os sindicatos vão ficar de bico calado?), das empresas de comunicação, dos políticos, das entidades representativas da sociedade civil, dos presidentes da Câmara e do Senado, dos governadores, de todo aquele, enfim, a quem cumpre ser protagonista na defesa das liberdades públicas quando ela é atacada.Sabem o que penso. As eventuais diferenças entre Chávez e Lula me parecem irrelevantes. O Brasil é hoje o principal fiador político da ditadura venezuelana. Os laços entre os dois países, sob o governo petista, não fazem senão se estreitar. Marco Aurélio Garcia já fala no Brasil como uma espécie de gestor de um modelo de “substituição de importações” na Venezuela. Escrevi sobre isso ontem. Vejam lá. Chávez é o retrato do perfeito idiota latino-americano, mas seus passos jamais são ignorados pelo Brasil.Aquela excitação quadrúpede que emanava das galerias expressava o juízo que o próprio PT — e quase toda a esquerda — faz da imprensa. Eles querem censura. Eles querem cassar concessões, eles querem silenciar as dissensões, eles querem impor o “seu” consenso. Já não lhes basta mais aparelhar praticamente todas as redações do país com sua ideologia perturbada. Por isso gostam tanto do coronel. Ele lhes oferece ação direta e emoções baratas.Mas que ninguém se engane. O chefe estratégico dessa onda chama-se Partido dos Trabalhadores. E seu líder inconteste é Lula. É como se o Apedeuta estivesse ali, ele próprio, comandando a vaia à democracia. Tudo o mais constante, é só questão de tempo.

(Publicado no blog de Reinaldo Azevedo - link ao lado)

19 janeiro 2007

O apanhador


The Catcher in the Rye é o livro que Mark Chapman pediu a John Lennon que autografasse antes de assassiná-lo. O que há de especial nesta obra J.D. Salinger, que o faz tão famoso? A mística que cobre o livro foi consideravelmente aumentada desde que Salinger, escritor americano, fez várias exigências ao seu editor, entre as quais que não fosse feita nenhuma publicidade do livro, e algum tempo depois recolheu-se ao anonimato numa pequena cidade americana, não tendo mais publicado nada desde então, além de manter-se afastado de qualquer contato com a mídia.
O Apanhador no Campo de Centeio é uma narrativa em primeira pessoa de alguns dias na vida do adolescente Holden Caulfield, que acaba de ser expulso da sua terceira escola bem às vésperas do Natal, nos EUA do pós-guerra. Caulfield é um “rebelde sem causa” e vive buscando qualquer coisa que preencha seu vazio existencial. Seu radicalismo (que hoje pode por vezes parecer um tanto prosaico), manifesta-se numa linguagem coloquial, repleta de gírias e palavrões (um problema na tradução brasileira), e no comportamento impulsivo e instável. O texto segue a linha joyceana do fluxo de consciência, com as frases jorrando aos borbotões, saltando de um assunto para o outro sem grande cerimônia, parecendo obra do acaso. (Na verdade, tudo isto é planejadíssimo, e existe até mesmo um capítulo no qual, sob uma sutil máscara, é discutido o papel das digressões na narrativa.) Em O Apanhador no Campo de Centeio o fluxo de consciência funciona particularmente bem, pois permite expressar a instabilidade emocional do protagonista não somente no conteúdo da narrativa mas também em sua forma. (ref.: texto de Nemo Nox, editor do blog Por um Punhado de Pixels)
Na transcrição abaixo, o protagonista tenta convencer a garota com quem acaba de se encontrar a fugir com ele, numa viagem sem qualquer planejamento ou destino certo.
- Eu disse que não, que não vai ter lugar maravilhoso nenhum para se ir, depois que eu terminar a universidade e tudo. Vê se escuta direito. Ia ser completamente diferente. Teríamos que descer de elevador, com as malas e a tralha toda. Íamos ter que telefonar para todo mundo, dizendo "até à volta", e mandar cartões postais dos hotéis e tudo. E eu estaria trabalhando em algum escritório, ganhando um dinheirão, e indo para o trabalho de táxi ou nos ônibus da Avenida Madison, e lendo jornais, e jogando bridge o tempo todo, e indo ao cinema, e vendo uma porção de documentários idiotas e traillers e jornais. Jornais cinematográficos. Puxa vida. Tem sempre uma corrida de cavalos imbecil, e uma dona quebrando uma garrafa no casco de um navio, e um chipanzé andando numa droga duma bicicleta, vestido de callças. Não ia ser a mesma coisa nem um pouquinho. Você não entendeu nada do que eu falei.

18 janeiro 2007

17 janeiro 2007

Velocidade


Ops! Já estamos em meados de janeiro. Já começamos a nos programar para o Carnaval. E o tempo voltou a correr. Assim, resolvo começar um ano novo de um jeito diferente de como terminei o anterior: com um pouco mais de calma, com menos pressa, com mais tempo pra ler, pra me exercitar, pra cozinhar e pra comer... Ah, as promessas de início de ano! Será que são feitas só pra serem descumpridas? Claro que não!!! Que bela oportunidade de fazer balanços, de reavaliar o curso do barco, de estabelecer novas metas e redefinir as prioridades! Ainda bem q temos os marcos - como o Reveillon - pra nos ajudarem a organizar a experiência caótica que é o viver. Bem, nesse embalo, o blog - este mesmo q vc está lendo - ganhou outra posição no complexo quebra-cabeças das atividades multívocas q compoem o meu dia-a-dia. Afinal, e eis aí uma das famosas decisões de final-de-ano, preciso estar um pouco menos polifrênico! Devo me dedicar mais a alguns projetos iniciados, como o livro que, a continuar no andamento em que está, vai perder o trem da história, cujo andamento é cada vez mais rápido. Assim, é o ritmo do blog q deverá mudar. Quem sabe, com algum ganho qualitativo, que bem que disto ele carece!
Feliz Ano Novo pra você! Ah, e com muitas mu-danças!