ou The Arabian Nights
Impossível, para mim, falar de As Mil e Uma Noites sem lembrar de Jorge Luis Borges, que tinha este livro como um de seus prediletos, e fez dele tema de muitos ensaios e contos. Em 1977 Borges proferiu uma série de sete conferências no Teatro Coliseo de Buenos Aires, e dedicou a terceira delas a As Mil e Uma Noites (as demais foram, respectivamente, a Divina Comédia, o pesadelo, o budismo, a poesia, a cabala e a cegueira). As conferências foram editadas num volume intitulado Siete Noches. Por que este incansável contador de histórias teria preferido chamar o conjunto de suas conferências precisamente de sete noites?
O aporte de Borges é bastante diverso daquele de Rushdie (ver post anterior). Enquanto este parte da obra para levantar questões que poderiam ser caracterizadas como uma crítica ao autoritarismo e ao machismo, o autor argentino mantém o seu estilo clássico, fazendo um passeio pelas inúmeras associações periféricas que a obra suscita.
É assim que Borges inicia sua preleção:
Senhoras e senhores:
O descobrimento do Oriente foi um acontecimento capital na história das nações ocidentais. Seria mais exato falar de uma contínua consciência do Oriente, comparável à presença da Pérsia na história grega. Além dessa consciência do Oriente ser algo vasto, imóvel, magnífico e incompreensível, há momentos de culminância. Vou indicar alguns. Com isso, entraremos de maneira perfeitamente adequada num assunto que tanto amo desde minha infância: o Livro das mil e uma noites ou, como se chamou na versão inglesa (que li primeiro), The Arabian Nights, Noites árabes; no título inglês há também um certo mistério, ainda que seja menos belo do que Livro das mil e uma noites.
Enumero alguns fatos. Por exemplo, os nove livros de Heródoto, onde se faz a revelação do Egito, o distante Egito. Digo "distante" porque o espaço se mede pelo tempo, além de que as navegações eram muito arriscadas. Para os gregos, o mundo egípcio era maior. Eles o consideravam misterioso.
Mais tarde examinaremos as palavras Oriente e Ocidente, que não podemos definir as que são verdadeiras. Acontece com elas o que Santo Agostinho dizia sobre o tempo: "O que é o tempo? Se não me perguntam, eu sei. Se me perguntam, desconheço". O que são o Oriente e o Ocidente? Se me perguntam, desconheço. Vamos procurar uma aproximação.
Com seu estilo absolutamente não linear, Borges vai mencionando os caminhos que marcaram a entrada no Oriente na cultura ocidental, passando pela influência que a Ilíada teria exercido sobre Alexandre da Macedônia; pelas referências feitas por Virgílio; e, mais adiante, os relatos de Marco Pólo. Tudo isso para chegar a outro objeto de deleite de Borges (e de seus leitores): o título! O título, diz ele, "é belo não só porque é lindo (como é lindo Os crepúsculos do jardim, de Lugones) mas também porque dá vontade de ler o livro.
Nesse título há uma beleza muito particular, talvez pelo fato de que a palavra "mil" seja para nós quase sinônimo de "infinito". Falar em mil noites é falar em infinitas noites - muitas e inumeráveis noites. Dizer "mil e uma noites" é acrescentar uma além do infinito. Há, em inglês, uma expressão curiosa. Muitas vezes, não se diz simplesmente for ever ("para sempre") mas for ever and a day ("para sempre mais um dia"). Ou seja, acrescenta-se um dia à palavra "sempre". Isso lembra a dedicatória que Reine fez a uma mulher: "Eu te amarei eternamente e ainda depois" .
Antes de relatar algumas das histórias que considera mais interessantes, Borges conta um pouco da história do livro e de suas traduções. Ela se inicia por volta do século XV, em Alexandria, com a compilação de uma série de contos que teriam sido depois relatados na Índia, depois na Pérsia, a seguir na Ásia Menor e, finalmente, acabaram sendo compilados no Cairo, já escritos em árabe. A primeira tradução européia aparece em 1704, com o primeiro dos seis volumes do orientalista francês Antoine Galland. Depois sucessivas edições e traduções fizeram com que se corroessem ainda mais as poucas certezas que sobre ele existiam. Não me deterei nos detalhes dessa aventura, que está narrada minuciosamente por Borges, a quem se pode facilmente recorrer. (Acima, a capa da edição brasileira de Sete Noites, de 1983, pela Editora Max Limonad. Deve haver alguma mais recente, e seguramente encontra-se o livro nas obras completas, já publicadas em português).
Para encerrar, quero recuperar da conferência de Borges uma passagem que me tocou profundamente:
A gente tem vontade de perder-se em As mil e uma noites, pois sabe que, se entrar nesse livro, é capaz de esquecer nosso pobre destino humano. Entrando nele, pode-se entrar num mundo que está repleto de figuras arquetípicas e de indivíduos também. No título de As mil e uma noites existe algo muito importante: a sugestão de que se trata de um livro infinito. E ele é, virtualmente. Os árabes dizem que ninguém pode ler As mil e uma noites até o fim. Não por tédio, mas porque se sente que o livro é infinito. Tenho em casa os dezessete volumes da tradução de Burton. Sei que nunca os lerei todos mas sei também que essas noites estão sempre à minha espera. Ainda que minha vida seja infeliz, os dezessete volumes aí estarão. Aí estará essa espécie de eternidade que são As mil e uma noites do Oriente.
Borges não está aqui falando apenas desse livro em particular, que é o seu preferido. Está falando de sua paixão pelos livros em geral, e assim toca o coração de todos aqueles que compartilham desse sentimento. Costumo dizer que a “maturidade” é aquilo que sentimos quando nos damos conta de que jamais conseguiremos ler toda nossa biblioteca... Borges diz o mesmo, com a diferença de que sabe dizê-lo com erudição e estilo, fazendo de As mil e uma noites o arquétipo de todos os livros.