Este tópico foi originalmente postado no dia 01 de novembro de 2006. Devido a sua utilidade, e para tornar o acesso de meus alunos mais fácil, volto a editá-lo com a data presente.
Uma das últimas atividades programadas durante o XXIV Congresso Brasileiro de Psiquiatria foi uma conferência sobre "Como escrever e publicar um trabalho científico", proferida por Wagner Gattaz. O professor Gattaz, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, é o dono da maior produção científica e do maior número de citações na literatura médica brasileira, entre todas as especialidades. Seus conselhos são, portanto, muito bem qualificados, e sua conferência foi repleta de dicas úteis e muito bem humoradas. O humor infelizmente não poderei reproduzir aqui, mas as dicas mais importantes anotei pensando nos meus alunos.
A primeira coisa que o conferencista nos lembra é que se Einstein fosse vivo, não teria hoje a mínima change de obter sucesso na comunidade científica, uma vez que não publicou durante anos, não pleiteava verbas para pesquisa, não dava aulas, não prestava consultorias nem dava pareceres, e não tinha discípulos.
Hoje, o conhecimento sistemático e formulado (que é a ciência) necessita sobretudo ser tornado público. Entretanto, assiste-se a dois processos na ciência contemporânea. Há um forte elitismo, uma vez que apenas 2% dos cientistas são responsáveis por 90% das citações, e mesmo as idéias ruins, desde que vindas de autores de elite, são melhor aceitas do que as boas idéias, vindas de cientistas desconhecidos. E há também uma grande inflação em ciência, resultante da necessidade de manter-se altos números de publicações, o que fica evidenciado no tamanho do Index Medicus, que em 1877 pesava 2 Kg, passando a 30 Kg em 1977, e a 60 Kg de peso em 2000. Estes dados refletem igualmente o enorme número de revistas científicas existentes - apenas da área médica - com o objetivo de abrigar a produção atual.
Entretanto, quantidade não é qualidade. Para que um trabalho científico seja bom, e tenha boas chances de ser publicado, ele deve permitir ao leitor informado: (a) avaliar as observações feitas, (b) repetir os experimentos, e (c) julgar se as conclusões são adequadas aos dados apresentados.
Um trabalho bem organizado deve responder adequadamente a quatro questões: (1) qual o problema (que deve estar claramente formulado na introdução), (2) como foi investigado (o que será descrito em materiais e métodos), (3) o que foi encontrado (questão correspondente aos resultados), e (4) o que os achados significam (ou seja, a discussão).
Título
Esta é, sem dúvida, a parte mais lida do trabalho e, portanto, merece uma atenção especial. Duas dicas importantes são: (a) utilize poucas palavras, e evite expressões macarrônicas e redundantes como "investigação sobre..." (o que é óbvio) ou "estudo epidemiológico" (que pode ser substituída simplesmente por "epidemiologia"; (b) se possível, já antecipe o principal resultado (p.ex. "aumento da enzima x na doença y").
Resumo
É a segunda parte mais lida. Deve conter: objetivo, método utilizado, resultados e conclusão. Não deve conter citações e nada que não esteja presente no texto.
Introdução
De maneira sucinta, (a) descrever a essência e a abrangência do problema investigado; (b) discutir a literatura relevante, de preferência remetendo o leitor a revisões recentes; e (c) apenas mencionar os métodos e resultados principais.
Materiais e métodos
Fornecer informações suficientes para que um leitor bem informado possa repetir o experimento; e apenas citar os testes de significância utilizados.
Resultados
É a parte mais importante, embora deva estar entre as mais breves. Algumas orientações: (a) não descrever a amostra (já feito no item anterior); (b) citar métodos apenas através de palavras chaves; (c) não começar a discutir os resultados; (d) descrever o que foi encontrado e o que não foi encontrado; (e) não abusar de porcentagens; (f) lembrar que a qualidade do trabalho é inversamente proporcional ao número de tabelas e gráficos, e escolher entre estes e o texto, não duplicando informações.
Discussão
(a) propor relações entre os resultados; (b) discutir, e não recapitular, os resultados; (c) estabelecer correlações e falta de correlações; (d) abordar os achados que concordam, e os que discordam, de publicações anteriores; (e) fazer um resumo das implicações dos achados; e (f) propor um conclusão, a mais breve possível.
Estilo
Por fim, quanto a aspectos de estilo, são as seguintes as recomendações do Prof. Gattaz: antes de mais nada, deixe-o aos poetas e evite a pompa, escrevendo como você fala; seja direto, e prefira as frases e as palavras curtas; não seja covarde (p.ex. "muitos, mas não todos....", ou "não pretendemos discutir todos os aspectos...", ou "tais substâncias são geralmente..."), mas preserve a modéstia.
E boa sorte!
4 comentários:
Ercy:
belo post. Aguardaremos a continuação. Sem uma ciência séria ficremos para trás. Você tem razão. A profusão de trabalhos vinculados à necessidade profissional acadêmica acaba gerando quantidade às vezes em detrimento da qualidade. Ainda bem que os cânones científicos que consistem na exigência da verificação da prova elidem qualquer aventura em pesudo-ciência. Seu texto é uma extraordinária contribuição no âmbito da epistemologia.
abs
Aluízio Amorm
OBRIGADO A AMBOS.
LEANDRO, COMO VC CHEGOU A ESTE POST?
VISITEI TAMBÉM O SEU BLOG E GOSTEI MUITO. POR ALGUM MOTIVO, NAO CONSEGUI POSTAR LÁ UM COMENTÁRIO SOBRE OS HQ, MAS CONCORDO COM SUA OBSERVAÇÃO. É ISTO AÍ!
CARO ERCY, GOSTEI TANTO DESTA MATÉRIA, QUE TOMEI A LIBERDADE DE COPIÁ-LA PARA O NOSSO COLEGA MURILLO CAPELLA, CUJO CURRÍCULO DE PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS É VASTO. ELE ESTÁ SEMPRE DANDO CONFERÊNCIAS EM CONGRESSOS, EXAMINANDO TESES E AINDA EXERCE ATIVIDADES DE COORDENAÇÃO DE ENSINO NA UNISUL. POR CERTO, TIRARÁ ALGUM PROVEITO DOS POSTULADOS QUE VOCÊ TÃO BEM ORGANIZOU. GRANDE ABRAÇO. MARIO COSTA
A lição é de grande qualidade.Não aprende, quem não prestar atenção, para mensagens sublimais.Gostei Muito!
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