01 fevereiro 2007

Em busca de si-mesmo

ou, a auto-reflexividade

A segurança ontológica requer uma crença na continuidade da auto-identidade e dos ambientes nos quais ela se organiza. Uma das formas que o indivíduo tem de se defender da angústia associada aos riscos e à reflexividade é a manutenção de rotinas que lhe assegurem uma sensação de continuidade temporal nas narrativas do eu. É o que Pierre Bordieu (Lipiansky, 1998) denomina de “habitus”, ou seja, um conjunto de condições disposições internas, um “núcleo duro”, que integram as experiências passadas e serve como matriz de percepções, de apreciações e de ações. O habitus é compartilhado pelos membros de um grupo ou comunidade que geralmente têm os mesmos tipos de experiências. Assim, as identificações grupais se constituem em estratégias através das quais o indivíduo busca defender sua existência e sua visibilidade social, sua integração com a comunidade, ao mesmo tempo em que valoriza e busca a própria coerência, o que nos ajuda a entender a tendência a um recrudescimento dos agrupamentos culturais e étnicos representados pelo neotribalismo, em oposição às forças uniformizadoras da globalização.
Não é apenas o como ser que as pessoas buscam, mas também o como fazer no mundo pós-tradicional: como se vestir, como se alimentar, como manter os relacionamentos amorosos, como fazer sexo melhor, como se comportar em cada situação, como... Nesse campo fértil, os livros de auto-ajuda multiplicam-se. Além disso, os recursos utilizados para se guiar na selva de informações em que o sujeito contemporâneo se vê perdido podem incluir práticas e saberes “alternativos”, ou “holísticos” – para usar um termo da moda –, como inúmeras formas de medicina e de terapia ditas “naturais” (através dos cristais, das cores, dos aromas, de florais...), orientações dietéticas naturalistas, exercícios de meditação, práticas religiosas orientais, ioga, etc.
É importante notar que, no contexto pesquisado, que inclui pessoas de classe média de Florianópolis, a religião mantém um lugar, ao lado das soluções especializadas, no conjunto de alternativas para a resolução de problemas da vida diária. Ainda que tenha perdido a força normatizadora e a capacidade de fornecer conforto emocional de que gozava nas sociedades tradicionais, a religião aparece como um caminho que ora se contrapõe, ora se sobrepõe, aos sistemas peritos. A ambivalência que permeia as relações cotidianas com a religião é revelada no discurso de Ana Luíza, que diz recorrer freqüentemente a Deus, nos momentos de angústia, para em seguida se lembrar que não acredita em Deus.
Cláudia, por exemplo, relata ter lido não apenas livros de auto-ajuda como outros, de orientação em diversos campos do comportamento, além de ter recorrido numa oportunidade ao aconselhamento de um padre para lidar com seu temor da morte. Paralelamente às religiões hegemônicas (católica e evangélica), o espiritismo e o budismo também são fontes de conforto e guias para a condução da vida diária no nosso meio.
Um sinal claro da reflexividade, ao lado do boom da literatura de auto-ajuda ocorrido nos anos 90, é a popularização da psicanálise e a apropriação do seu vocabulário pela linguagem cotidiana. Conceitos como inconsciente, repressão, neurose, entre tantos outros, passaram a fazer parte dos discursos cotidianos, e a instrumentar as pessoas nos processos auto-reflexivos.
Alguns autores reforçam a opinião difundida de que existe uma crescente dependência das pessoas em relação aos psicoterapeutas, no sentido pejorativo do termo “dependência”, assim como a hipótese que atribui o desenvolvimento das terapias à secularização e ao enfraquecimento da religião tradicional. Não há, entretanto, na terapia, a reprodução de uma autoridade que caracteriza as práticas religiosas. A terapia, tal como a entendemos hoje, é um fenômeno especifico do nosso tempo, sem paralelos com as sociedades tradicionais; um sistema especializado que faz parte do projeto reflexivo do eu, e é típico da reflexividade moderna. Além disso, ao contrário do paradigma religioso, que apontava para a ordem natural das coisas, a noção de mudança é central no paradigma científico, no qual se baseia a atividade psicoterápica (Osorio, 1996).
A terapia, portanto, não é simplesmente um meio de lidar com novas ansiedades, mas uma expressão da reflexividade do eu, “um fenômeno que, no nível do indivíduo, como as instituições maiores da modernidade, equilibra oportunidade e catástrofe potencial em medidas iguais” (Giddens, 2002, p. 38, grifos meus). Em outras palavras, pode tanto provocar dependência e passividade quanto a tomada ativa de decisão sobre a própria vida. O projeto reflexivo do eu toma o lugar dos ritos de passagem das sociedades tradicionais, e busca dar conta de conectar as mudanças pessoais e as mudanças sociais. Lúcia, por exemplo, não tinha sequer uma idéia clara das finalidades de uma psicoterapia até havê-la iniciado, há cerca de um ano. Após este período, chega à conclusão de que nunca tinha parado para pensar em si mesma. Sempre levou a vida “como aquela música: deixa a vida me levar, vida leva eu...”.

Trecho do capítulo Sobre a insegurança ontológica, do livro em produção.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ercy,

Colei pequena parte do seu post que acho top!

Nunca fiz therapia e portanto, tenho chegado a conclusões que realmente, nunca pensei em mim porque sempre, o defeito, de pensar nos outros me tem atrapalhado...dai compreendi aos 50que não deixarei que minha existencia seja pautada no como era antes!

-/Após este período, chega à conclusão de que nunca tinha parado para pensar em si mesma./

-/Em outras palavras, pode tanto provocar dependência e passividade quanto a tomada ativa de decisão sobre a própria vida./

Anônimo disse...

Ercy,

O Trecho...seria seu livro??????


-/Trecho do capítulo Sobre a insegurança ontológica, do livro em produção./

Ercy Soar disse...

Sim, Julia. É um livro q estou escrevendo a partir de minha tese, e que trata da insegurança e da busca por reconhecimento na sociedade contemporânea.

Anônimo disse...

Ercy,

Ah!Visto por este angulo,acho que seu livro tem chances de dar certo.

Realmente os dois:Insegurança e Reconhecimento na sociedade contemporanea.

Certeza, você vai direto no virus da problematica de tudo, no que diz respeito aos efeitos colaterais!

La no blog do magenco deixei um comentario exatamente sobre edições,projetos, hehehehehe e acabei de mandar um mail pra ele.

Otimo ter amostra de um pouquinho do que sera seu livro;so lhe digo:NÃO ABANDONE E CONTINUE!

So não esqueça de avisar quando sera terminado.