Centre Georges Pompidou, Paris, maio de 1987.
Republicado hoje em homenagem às recém-visitantes de Paris...
Centre Georges Pompidou, Paris, maio de 1987.
Republicado hoje em homenagem às recém-visitantes de Paris...
A recente publicação de um livro póstumo de Gilberto Freyre me reconduziu à sua obra prima Casa-Grande e Senzala. Este livro já me causara uma forte e duradoura impressão quando o li a primeira vez, na década de 80, e o recomendo a todos que queiram entender o Brasil, mesmo quem não tenha formação em ciências sociais. Leiam-no, inclusive, pela boa literatura que é. Como uma saga ou um romance histórico.
Casa-Grande é um rico retrato do Brasil colonial. É verdade que, como apontam alguns críticos, ele carrega as cores da realidade nordestina, especialmente do Pernambuco de Freyre. Mas ali estão as características marcantes do organização social dos primeiros três séculos de uma proto-nação, da economia açucareira, da escravidão, das influências culturais dos portugueses, índios e negros; e do que, na visão do sociólogo, marca definitivamente o Brasil, a miscigenação entre esses três grupos populacionais. Uma mistura que ele reconhece como riqueza, como vantagem, e como patrimônio.
Gilberto Freyre desfaz o mito de que fomos colonizados por uma escória formada por degredados, até porque os portugueses não tinham tanta gente para degredar. Foi projeto de Portugal ocupar suas terras e plantar aqui as bases de uma colônia produtiva, e, para isto, teria para cá enviado representantes de sua nobreza.
Algumas passagens, escolhidas quase ao acaso, dão uma pequena amostra da beleza do texto que, nos anos subseqüentes à sua publicação, em 1933, foi traduzido para dezenas de idiomas e acolhido com entusiasmo pela comunidade acadêmica.
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar-se na boca da gente.
Freyre dedicou grande espaço as contribuições dos índios à cultura, passando pela pela religiosidade, pela culinária e pela língua. Quando fala do indígena na formação da família brasileira, e coerentemente com sua própria vida privada, é grande também nesse capítulo a ênfase dada à sexualidade. Freyre afirma, com muita picardia, que “o europeu saltava em terra escorregando em índia nua; os próprios padres da Companhia [de Jesus] precisavam descer com cuidado, senão atolavam o pé em carne”. Além disso, a higiene e a vaidade, o gosto pelos enfeites, teriam sido outras das herenças desse grupo
Da cunhã é que nos veio o melhor da cultura indígena. O asseio pessoal. A higiene do corpo. O milho. O caju. O mingau. O brasileiro de hoje, amante do banho e sempre de pente e espelhinho no bolso, o cabelo brilhante de loção ou de óleo de coco, reflete a influencia de tão remotas avós.
Filho de um importante latinista, como relata em seu livro póstumo De Menino a Homem, Freyre construiu uma sólida formação intelectual. Estudou num colégio americano, aos 14 anos já ensinava latim, e aos 18 segue para os Estados Unidos, onde foi aluno de Franz Boas, um dos fundadores da Antropologia Cultural. A publicação de Casa-Grande e Senzala, quando tinha apenas 33 anos de idade, tornou-o uma verdadeira celebridade. Freyre não usa de nenhuma falsa modéstia quando relembra esses fatos, e o seu sucesso com as mulheres, em suas memórias.
A genialidade de Gilberto Freyre fez dele um pioneiro nos estudos interdisciplinares, e sua obra foi reconhecida pela originalidade com que articula saberes de diferentes áreas, além do estilo refinado, quase literário, com que constrói o seu retrato do Brasil colonial. Se o Brasil quer ter orgulho de si mesmo – ou do que de bom tem, em tempos de governos que nos envergonham diante da comunidade internacional – é bom que mantenha viva a memória deste ilustre brasileiro. (mais)
Estou cansada de tantos acontecimentos em tão pouco tempo; tantos ganhos e tantas perdas... Ainda espero fazer uma vida pra mim... Como? Não sei!Nos capítulos anteriores tratei de vários aspectos da vida no mundo de hoje, na sociedade globalizada, tecnificada, interconectada e em permanente transformação. As múltiplas facetas dessa sociedade tornam impossível qualquer apreciação ou julgamento simplista a respeito dos seus rumos e das consequências futuras. É muito difícil dizer se a sociedade é “melhor” ou “pior” do que as gerações que nos antecederam. Mais difícil ainda dizer se somos melhores ou piores que nossos antepassados. Pelo menos, sem que se deixe claro de que aspectos estamos falando.
Lúcia, 53 anos, durante sessão de terapia.
Como amante da música, pude conhecer muito mais de música depois da abertura comercial brasileira, em 1990, quando passamos a ter acesso a CD’S importados. Não só isso, na filosofia também. O Budismo foi uma delas. Uma das coisas que me ajudou na época da minha crise foi, através do Yoga, ter descoberto um pouco do Budismo. Não se falava em Budismo aqui no Brasil, até pouco tempo atrás.
Durante uma hora numa rua de cidade somos informados dos estilos de vestir de negros, brancos, classe alta, classe baixa, e mais. Podemos aprender as maneiras dos executivos japoneses, camelôs, sikhs, Hare Krishnas, ou tocadores de flauta do Chile. Vemos como relações são mantidas entre mães e filhas, executivos, amigos adolescentes, e trabalhadores da construção civil. Uma hora num escritório de negócios pode nos expor aos pontos de vista de um empresário texano de petróleo, dum advogado de Chicago, e dum ativista gay de São Francisco. Comentadores de rádio compartilham idéias sobre boxe, poluição, e abuso infantil. [...] Via televisão, uma miríade de figuras é introduzida em nossos lares, as quais de outra forma jamais entrariam. Milhões de pessoas assistem TV, enquanto convidados de talk-shows – assassinos, estupradores, prisioneiras, abusadores de crianças, membros da KKK [Ku-Klux-Klan], pacientes psiquiátricos, e outros geralmente desacreditados – tentam fazer suas vidas inteligíveis. Há poucas crianças de seis anos de idade que não possam fazer pelo menos uma avaliação rudimentar sobre a vida nas vilas africanas, sobre as preocupações dos pais que se divorciam, ou sobre o problema das drogas nos guetos. A cada hora nosso depósito de conhecimento social se expande em amplitude e sofisticação.
No tengo a quien rezarle pidiendo luz,
Ando tanteando el espacio a ciegas.
No me malinterpreten,
No estoy quejándome.
Soy jardinero de mis dilemas.
Hermana duda,
Pasarán los años,
Cambiarán las modas,
Vendrán otras guerras,
Perderán los mismos
Y ojalá que tu
Sigas teniéndome a tiro.
Com todas as mudanças boas que vieram, vieram dois lados. Fizeram essa revolução: pais não podem mais bater nos filhos. Está tudo bem, mas uns levaram isso muito bem e outros deixaram as crianças completamente soltas. Mas o ponto aonde eu quero chegar é o seguinte: essas crianças, a gente está cuidando delas agora, mas essa evolução tem dois lados: tem a parte muito boa, e para onde é que a gente vai, na parte ruim, sabe?!
Eu fui criada num ambiente em que vigoravam alguns princípios que foram muito importantes para eu desvendar o mundo. Quando eu me vi frente ao mundo, eu vi que muitas coisas eram extremamente diferentes, principalmente no que diz respeito aos valores, principalmente hoje, quando tudo virou mercadoria. Isto me dá muita angústia. De repente eu vejo que as coisas estão muito descartáveis e eu sei a dimensão que isso tem. As pessoas falam e “desfalam”, e eu persigo tanto a coerência... Acho que são conflitos que me geram tanto a sensação que eu sou inadequada, como que talvez o problema esteja lá fora. Acho que esse mundo no qual a gente vive está doente. Mas acho que a responsabilidade também é minha. Enfim, acho que o problema é de ambos, do mundo e meu.
Longe de ser um Vieira no meu domínio sobre a língua portuguesa abrasileirada, quando, cada noite, converso com Deus ou com Cristo ou com Maria, como se conversasse com amigos íntimos, as palavras que uso são as mais tropicais, as mais telúricas, as mais ecologicamente brasileiras. Não que me repugne o latim, de vogais as mais doces de Igreja e que aprendi com Meu Pai. [...]
Quando, conversando com Deus, abordo assuntos sexuais, que palavras uso para designar fatos dessa espécie? Só as eruditas? Só as elegantes? Só as cerimoniosas?
Devo dizer que não. Por vezes decido que Deus prefere que, como íntimo, seu amigo, seu confidente, os termos relativos a coisas de sexo sejam os cotidianos e até, dentre os cotidianos, os mais crus. Caralho, por exemplo. Não há sinônimo da palavra "caralho" que diga o que diz, pura e cruamente, "caralho".
A vida é atroz, nós o sabemos. Mas precisamente porque espero pouca coisa da condição humana, os períodos de felicidade, os progressos parciais, os esforços para recomeçar e para continuar parecem-me tão prodigiosos que chegam a compensar a massa imensa de males, fracassos, incúria e erros. As catástrofes e as ruínas virão; a desordem triunfará; de tempos em tempos, no entanto, a ordem voltará a reinar. A paz instalar-se-á de novo entre dois períodos de guerra; as palavras liberdade, humanidade e justiça recuperarão aqui e ali o sentido que temos tentado dar-lhes.Marguerite Yourcenar, Memórias de Adriano.
No mundo contemporâneo, as ameaças ao indivíduo e à espécie, à integridade pessoal e à sobrevivência da humanidade, confundem-se em vários níveis sobrepostos. Estamos sujeitos a ameaças que passam pelos conflitos bélicos e pelo terrorismo internacional, ganham maior concretude na criminalidade urbana, e refletem-se na violência do trânsito e na violência doméstica, para daí perpetuarem-se num eterno ciclo. Os efeitos desagregadores do capitalismo flexível, em especial a predominância do binômio mercantilização-competitividade, estão fortemente presentes na vida social.
Esta é também uma “sociedade de risco”, como afirmam alguns sociólogos, especialmente no que se refere à forma como vivenciamos os riscos à saúde e ao meio ambiente. E já está abalada a crença na capacidade da ciência e da tecnologia propiciarem soluções para todos os problemas da vida, assim como a certeza de que o homem pode dominar e aproveitar racionalmente os recursos da natureza.
Para nós, brasileiros, a inflação, a corrupção, a falta de acesso à saúde e à educação, a insegurança no emprego e a violência urbana são mais perceptíveis cotidianamente do que outros riscos globais. Mas, nas economias mais sólidas e influentes, o período de “guerra fria” foi particularmente tenso, e representou um perigo muito real de uma ecatombe nuclear que poderia nos levar ao auto-extermínio, o que contribuiu para o surgimento uma consciência pacifista universal que muitas vezes desconsidera as contingências históricas e o papel civilizador de algumas guerras.
Quanto às ameaças ecológicas ao planeta e à sobrevivência da espécie humana (para não falarmos de tantas outras espécies em risco de extinção), difunde-se rapidamente o conhecimento de que estamos todos “no mesmo barco”; e de que tais ameaças têm origens sistêmicas e globais. A consciência ecológica vem acompanhada de profundas mudanças de mentalidade e de hábitos. Há duas gerações, caçar passarinhos era uma das modalidades mais comuns de brincadeira infantil. Hoje, são as crianças as primeiras a se rebelarem contra qualquer forma de agressão à fauna silvestre. As mudanças estendem-se a um grande espectro de comportamentos cotidianos, que vão desde não jogar lixo na rua até a condenação e restrição do hábito de fumar.
A criação de uma rede mundial de telecomunicações que transforma o planeta numa “aldeia global”; e as relações de interdependência econômica e ambiental, são acompanhadas igualmente de uma globalização da consciência ecológica e pacifista. Sentimo-nos como tripulantes da “espaçonave Terra”, de tal modo que qualquer coisa que se faça em seu interior afetará a todos os passageiros...
Sim, é verdade que existem fortes tendências ao incremento da competitividade e do narcisismo cultural, que impulsionam as pessoas a buscarem o interesse próprio a todo custo, numa espécie de “salve-se quem puder” ou “cada um por si e Deus por todos”. Mas, como tudo o mais na sociedade, há forças que agem em sentido contrário a estas tendências. As ações de defesa à ecologia mobilizando pessoas ao redor do globo são fundamentalmente de natureza solidária e altruística; o florescimento de uma cultura do voluntariado, que leva pessoas desinteressadas a se engajarem em atividades de apoio a quem mais necessita; uma crescente consciência de cidadania acompanhada de maior responsabilidade pela participação nos espaços de decisão coletiva; e maior respeito às diversidades inerentes à condição humana.
A psicologia evolucionária, ou darwinista, sugere que um dos atributos mais importantes para a sobrevivência de nossa espécie é o fato de sermos fundamentalmente cooperativos. Ou seja, se tivesse predominado na evolução as forças egoístas sobre aquelas da solidariedade e da cooperação, a espécie humana não teria sobrevivido. Assim, amor, piedade, generosidade, remorso, afeição amistosa e confiança duradoura, por exemplo, são partes de nossa herança genética (tanto ou mais quanto os sentimentos hostis). Além disso, os estudos de psicologia têm revelado o que sabemos intuitivamente: que ajudar o próximo pode fazer tão ou mais bem a quem o faz do que a quem recebe. Isto talvez seja uma expressão da herança evolutiva que apenas mencionei. A solidariedade – embora errática e muitas vezes cega ao que não é transformado em tele-dramaturgia – ainda assim se manifesta fortemente, em todas as partes do mundo, diante das grandes catástrofes climáticas e das guerras.
A cultura e os esportes são veículos poderosos de encontro e de desenvolvimento do espírito de solidariedade e do sentimento de fraternidade universal. Eventos como as Olimpíadas e a Copa do Mundo rompem barreiras políticas, culturais e econômicas, e contribuem decisivamente para a paz. O mesmo pode-se dizer sobre as manifestações culturais.
Um exemplo significativo de cultura globalizada me foi dado através de um típico produto da sociedade contemporânea: um dvd. Trata-se de “Yo-Yo Ma Inspired by Bach – Cello Suítes N° 5 & 6”, uma produção internacional em que o violoncelista interpreta suítes de Bach em associação com outros formas de arte. Neste caso, lê-se o seguinte na contracapa do dvd: "Mestre do Kabuki, o ator Tamasaburo Bando embarca numa jornada para descobrir, através da dança tradicional japonesa, a universalidade e emoção da Quinta Suíte de Bach. O resultado é a reveladora, intercultural e transoceânica colaboração com Yo-Yo Ma, sensivelmente documentada pelo diretor Niv Fichman". O interessante disso é que Bach era alemão, Tamasaburo Bando é japonês, Yo-Yo Ma nasceu na França, e é filho de pais chineses, e o diretor Niv Fischman é americano*.
Mais recentemente, ganhou visibilidade um projeto de união entre os povos através da música, que deu origem ao um dvd denominado “Peace through music”, no qual músicos de todas as partes do planeta são conectados tecnologicamente para executarem conjuntamente canções igualmente provenientes de diferentes berços culturais.
Foi a civilização ocidental que inventou os direitos humanos e pregou – a partir do Iluminismo – a necessidade de autonomia individual e de liberdade, a capacidade de pensar por si mesmo recorrendo à razão, e a aspiração ao progresso. Não nos esqueçamos, entretanto, que apesar da crença na “racionalidade moderna”, a humanidade deu abrigo, até muito recentemente, a comportamentos auto-destrutivos e bastante primitivos: o racismo, a escravidão, a desigualdade entre os sexos, a discriminação das minorias, o terrorismo de Estado, a tortura, o genocídio, o totalitarismo, os campos de concentração. Para ficarmos apenas com o primeiro desses crimes, é importante que nos demos conta de que há pouco mais de um século ainda convivíamos, no Brasil, com a vergonha da escravidão como uma instituição legalmente e, para muitos, moralmente aceita. Quase todos eles persistem, aqui e ali, dependendo do desenvolvimento da sociedade civil e dos organismos oficiais. Mas já não são tolerados e alavancados por populações inteiras, como ocorreu com o Holocausto, em pleno século xx, numa sociedade européia econômica e culturalmente desenvolvida.
Sim, estamos – a sociedade como um todo – fazendo grandes progressos, apesar das guerras, dos crimes ambientais, da violência urbana, das iniqüidades sociais que persistem. Nas sociedades desenvolvidas, pelo menos, já não se admite que pais castiguem fisicamente seus filhos, que maridos agridam suas esposas, ou que pessoas sejam discriminadas pela cor de sua pele. Não é pouca coisa.
* Assista a um segmento do vídeo aqui
[Capítulo original de Os outros que somos]
Os pais de Clara, de 17 anos, recorreram a mim com queixas de que a filha vinha emagrecendo de forma perigosa e insistia em se considerar com excesso de peso, apesar de todas as evidencias objetivas em contrário. Como já haviam tentado sem sucesso uma terapia individual, e a jovem apresentava grande resistência inicial ao tratamento, optei por atender o grupo familiar, composto pelos pais na faixa dos 50 anos e por duas filhas: Clara e a irmã Joana, de 22 anos. Ao dizer “venham todos” eu estava comunicando à paciente meu reconhecimento de que ela não era a “culpada” ou a “errada”, como vinha sendo tratada, e tentei estabelecer com ela uma aliança terapêutica.
Já nas primeiras sessões vieram à tona graves problemas conjugais, que incluíam o abuso de álcool pelo pai e agressões físicas mútuas, e uma nítida coalizão entre as mulheres contra o único homem da casa. A mãe mantinha um vínculo de confidência e de dependência emocional com as filhas, principalmente com Clara.
Uma mãe que se apóia na filha está invertendo os papéis e representa geralmente um fardo que uma menina não pode suportar. Este tema foi trabalhado, conotando-se a doença da filha como uma denúncia dos problemas familiares e, ao mesmo tempo, como uma tentativa inconsciente de deter o crescimento. Desta maneira ela poderia permanecer como um escudo entre a mãe e o pai, uma vez que a irmã mais velha já havia saído de casa para estudar fora. Aos poucos Clara foi abandonando o sintoma e, com sua melhora, o tratamento foi centrado no casal. Nessa fase, tratou-se da aposentadoria recente do pai e seu sentimento de confusão frente à nova fase de vida. Revelaram-se, também, problemas de ordem sexual e outros sintomas depressivos e ansiosos de ambos os pais.
Ao longo do tempo ficou evidente a necessidade de tratamento psiquiátrico do pai. Ele foi encaminhado para acompanhamento e, até onde tive notícias, estava medicado e ainda tentando controlar suas crises de agressividade, embora já então em abstinência alcóolica. Apesar dos problemas familiares e das manifestações típicas da adolescência, Clara apresentou melhora completa da anorexia nervosa e encontrava-se bem, tendo sido orientada a seguir em psicoterapia em sua cidade de origem.
Eu cresci ouvindo que magérrimo é lindo... Eu acredito nisto, e eu não consigo não pensar assim também. Eu olho pra alguém que não é tão magro, mas é bonito, e eu penso: essa pessoa seria mais bonita se fosse mais magra. É absurdo, mas a minha geração toda pensa assim. Eu mesma perderia mais uns cinco quilos.
Não, não se trata da Jabulani, a fatídica bola anti-futebol da Copa. Tampouco se trata de Dunga, o fatídico técnico anti-alegria da Seleçao brasileira. Ainda assim, não vamos sair da esfera do futebol. Vamos falar de outro vilão, este maior do que qualquer bola desgovernada, este aquele que deveria segurá-la, no tempo em que barbarizava com a vida alheia.
A forma como o goleiro Bruno lidou com o desaparecimento da sua ex-amante não deixa dúvidas quanto à sua brutal indiferença pelo sofrimento humano. Enquanto todos procuravam por Eliza, a pretexto de demostrar inocência, o jogador de futebol continuou comparecendo aos treinos do Flamengo, tendo sido filmado às gargalhadas com os colegas de time.
Bruno aparentou tão bem não ter preocupações ou culpa porque não os tem mesmo. Faz parte do repertório sintomático das personalidades psicopáticas a completa falta de empatia, ou seja, de capacidade de se colocar no lugar de outro que sofre. Outro traço psicopatológico é deixar os rastros de seus crimes, pois a onipotência mágica (talvez somada à nossa história de crônica impunidade) faz com que menospreze os riscos. Os psicanalistas sugerem outra explicação: a de que deixam pistas para que venham a ser punidos, por uma compulsão inconsciente de repetição. De fato, faz parte da história da maior parte dos agressores patológicos que tenham sido agredidos enquanto crianças. Nosso caso atual não foge à esta regra. Bruno foi abandonado e negligenciado pelos pais, o que, nem neste nem em qualquer outro caso serve de justificativa para seus atos.
Por acaso, mas nem tanto, pois a psicopatia crassa em nosso meio, o último post deste blog versava sobre as personalidades perigosas. Em outras palavras: personalidades anti-sociais, psicopáticas ou sociopáticas (são todos sinônimos). Mesmo quem não o conheça na intimidade há de reconhecer varios traços no personagem que povoa nossos telejornais, nossas páginas de revistas e nossas conversas e nossos pesadelos.
Os relacionamentos do goleiro com as pessoas que se encontram implicadas no crime revela, mais do que qualquer prova material que venha a ser encontrada, a sua própria identidade social. Bruno, num presságio do que ora se revela ao mundo, há poucas semanas havia defendido o colega Adriano por ter agredido a noiva, minimizando a importância do fato. Enquanto a trama se desvelava perante os olhos e corações atônitos dos brasileiros, o moço seguia sua vida como se nada tivesse acontecido. Participou – segundo atestam os envolvidos – de atos de barbárie inominável, e depois foi ao clube treinar. “Matou a mãe e foi andar de bicicleta”. A indiferença, essa suprema forma de violência!
SUSPEITANDO DE ALGO
1. Eu confio nesta pessoa?
2. Essa pessoa costuma levar a sério os seus compromissos?
3. Esse relacionamento me faz me sentir melhor comigo mesmo?
4. Essa pessoa tem a mesma consideração para com as minhas necessidades que tem para com as necessidades dela?
5. Essa pessoa é sensível e afetuosa para comigo?
6. Essa pessoa é honesta em relação a questões importantes do nosso relacionamento?
7. Essa pessoa é honesta e confiável em outros relacionamentos?
8. Eu (e meus filhos) me sinto sempre seguro com esta pessoa?
9. Essa pessoa respeita as regras e obedece as leis?
10. Outras pessoas que eu amo e em quem confio acreditam que esta pessoa seja boa para mim?
ALGO MAIS QUE UMA SUSPEITA
1. Essa pessoa insiste em se envolver em atividades impulsivas, desnecessariamente perigosas ou auto-destrutivas?
2. Essa pessoa nega que tenha um problema?
3. Ela recusa ajuda profissional para o seu problema?
4. Ela permanece sem fazer mudanças apesar de muitas tentativas de ajuda profissional?
5. É possível que no futuro esta pessoa venha a me agredir (ou a meus filhos)?
6. Essa pessoa se mantém envolvida em algum tipo de ato ilegal?
Tratei do tema também no post de 25.out.2008
Durante muito tempo, três inquietações dominaram a relação com a cultura escrita. A primeira é o temor da perda. Ela levou à busca dos textos ameaçados, à cópia dos livros mais preciosos, à impressão dos manuscritos, à edificação das grandes bibliotecas. Contra os desaparecimentos sempre possíveis, trata-se de recolher, fixar e preservar. A tarefa, jamais finda, é ameaçada por um outro perigo: a corrupção dos textos. No tempo da cópia manuscrita, a mão do escriba pode falhar e acumular os erros. Na era do impresso, a ignorância dos tipógrafos ou dos revisores, como os maus modos dos editores, trazem riscos ainda maiores. Preservar o patrimônio escrito frente à perda ou à corrupção suscita também uma outra inquietude: a do excesso. A proliferação textual pode se tornar obstáculo ao conhecimento. Para dominá-lo, são necessários instrumentos capazes de triar, classificar, hierarquizar. Mas, irônico paradoxo, essas ferramentas são elas próprias novos livros que se juntam a todos os outros.
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Num dos primeiros livros a analisarem o significado sociológico e psicológico da Internet, Life on the Screen (1997), Sherry Turkle analisa os impactos da rede sobre a noção de tempo e espaço, e sobre identidade pessoal, mostrando como ela muda as maneiras como pensamos, como lidamos com dinheiro, como exercitamos nossa sexualidade e nos relacionamos com outros. O grande risco estaria no quanto as pessoas podem se perder no espaço cibernético. Turkle estudou particularmente as comunidades virtuais onde as pessoas constroem personalidades imaginárias através das quais projetam e realizam fantasias de toda ordem. Segundo ela, podemos estar saindo de uma cultura do cálculo para outra da simulação. Não que isto seja necessariamente ruim, desde que não se trate o mundo virtual como um substituto da vida real, mas como uma alternativa ao mundo fora da tela do computador.
Outro pioneiro nesse campo de estudos foi Pierre Lévy, que viu no surgimento de um “ciberespaço” e no correspondente desenvolvimento de uma “cibercultura” potencialidades positivas para o processo civilizatório, ainda que elas contribuam decisivamente para a dissolução das tradicionais fronteiras tempo-espaciais. A tecnologia não é má por princípio, embora a sua utilização possa ser perniciosa. A Internet, sinaliza Lévy, nasceu do desejo de uma geração ampliar as possibilidades de comunicação e, ao mesmo tempo em que universaliza o conhecimento, proporciona e enfatiza a heterogeneidade.
Em suma, a Internet é o retrato acabado da sociedade contemporânea, esta mesma que não pode ser pensada sem os impactos da informática, das comunicações por satélite e dos avanços nos meios de transportes e da própria Internet. Ela amplia e dissolve, conecta e isola, amplia redes de relacionamento ao mesmo tempo em que pode funcionar como barreira para a intimidade e a proximidade física entre as pessoas. Novas formas de identidade são experimentadas, enquanto os referentes tradicionais de identidade tornam-se cada vez menos importantes, como as redes socias locais e familiares e os vínculos de inserção nas culturas locais.
Quando eu era um adolescente correspondia-me com jovens de outros países, pela curiosidade de conhecer o mundo. Era tudo difícil e demorado: cartas, envelopes, endereços, selos... Hoje, pessoas de todo o mundo conectam-se e formam comunidades de interesses na rede com a facilidade de um clic. Redes de relacionamento como Orkut, Facebook e Twitter permitem encontros inusitados e aproximam pessoas que, de outra forma, jamais se encontrariam. A socialização humana ampliou-se de tal maneira que já não podemos pensar a sociedade humana – e os meios de comunicação que lhe dão coesão – nos mesmos termos de poucas décadas atrás. Minha experiência de psicoterapeuta confirma o que vários estudos recentes apontam, que mais do que substituir a “vida real”, a Internet amplifica e complementa a socialização que ocorre fora dela. Pessoas mais sociáveis tenderão a repetir isto formando e mantendo maiores redes na net. Aqueles que são mais introspectivos e reservados tendem também a reproduzir isto na rede. Por outro lado, tudo leva a crer que as redes virtuais fazem cada vez mais parte da vida real das pessoas, e que a distinção entre uma e outra coisa perca gradualmente qualquer sentido.
A Internet será um marco na história da humanidade com conseqüências ainda mais importantes do que teve a disseminação da imprensa escrita. A Internet modifica nossos processos cognitivos pelo acesso ilimitado e imediato à informação, pela ampliação a níveis inéditos de nossas capacidades associativas, e por uma quantidade de estímulos que – quando não devidamente auto-limitados – podem sim levar o indivíduo a estados de saturação sensorial. Mais do que isto, ela modifica nosso senso de identidade, indissociável dos contextos relacionais.
Faz parte da natureza humana que tenhamos cultura, e fazem parte da cultura as ferramentas que construímos e utilizamos. Estas, por sua vez, nos determinam retroativamente. Se um dia nos vimos como guerreiros e caçadores, e outro dia fomos conquistadores de novos mundos, hoje somos internautas.
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