08 novembro 2006

O ser-tão grande


Em maio deste ano fez cinqüenta anos que foi publicada aquela que é considerada por muitos a maior obra de ficção já escrita por um brasileiro, o livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Médico, diplomata e escritor, Guimarães Rosa foi um inovador no uso da língua portuguesa e homem de grande cultura. Seu jeito peculiar de escrever combina o linguajar simples do sertanejo com o uso de neologismos, palavras inventadas a partir de outras, provenientes dos muitos idiomas – vivos e mortos – que dominava. Rosa deu voz à sabedoria popular, ao mesmo tempo em que imprimia enorme profundidade filosófica à sua prosa.
Ler Guimarães Rosa é um aprendizado, e não são poucos os que desistem nas primeiras tentativas. Depois que se aprende, entretanto, torna-se uma paixão, e sua obra pode propiciar inesgotáveis descobertas e novas interpretações ao leitor. As três leituras completas que fiz (além nas inúmeras leituras parciais) do Grande Sertão, desde o início da década de oitenta, foram, cada uma delas, fonte de renovado prazer. A estória já foi transformada em mini-série pela Rede Globo, em 1986, e muitos hão de lembrar-se do Riobaldo (o jagunço que no livro conta sua vida a um interlocutor invisível) vivido por Toni Ramos, de Diadorim, representado por Bruna Lombardi, e de um Hermógenes, o grande vilão, magistralmente incorporado por Tarcisio Meira.
Muitas interpretações já foram feitas desta obra, e comentadores mais habilitados que eu já a estudaram e escreveram sobre ela. Quem tiver interesse em conhecer mais sobre o livro e seu autor encontrará farto material disponível na Internet e nas livrarias. Meu interesse e meu objetivo são menos audaciosos, e não vão além de prestar homenagem a esse grande escritor, compartilhando com meus leitores algumas pedras preciosas garimpadas nesse que é um dos meus livros de cabeceira.
Guimarães Rosa reitera muitas vezes, ao longo de sua obra-prima, que “o sertão está em toda parte”, ou seja, que o sertão nada mais é do que uma metáfora do mundo, da vida, dos encontros e desencontros humanos. Somos todos sertanejos, temos nossas batalhas ferozes a lutar e os nossos desertos a vencer; vivemos amores impossíveis, e outros nem tanto, e encontramos consolo no sexo e na amizade; somos atormentados por dúvidas e tentações, e somos muitas vezes obrigados a negociar com o Diabo.
A condição humana, paradoxalmente tão universal e tão particular, é o tema de Grande Sertão (o mesmo tema de todas as grandes obras literárias!). Somos o que somos, temos unicidade, particularidade, individualidade. No dizer de Riobaldo, “eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo...” Ainda assim, somos um permanente devir, um vir-a-ser, um projeto inacabado, um caminho a ser descoberto. “O mais bonito importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.
Aquilo que chamamos identidade, e que tem por origem etimológica o termo “idem”, ou seja, aquilo que supostamente permanece o mesmo, nada mais é do que uma coleção de recortes, de memórias, de registros intercambiantes e por vezes sobrepostos, e que nos confere a sensação de sermos provisórios, contraditórios e inacabados. Nas palavras de Riobaldo, “a lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse uma pessoa diferente”.
É nas veredas, nos atalhos da vida, que vamos sendo e deixando de ser, que vamos nos descobrindo únicos e múltiplos. Talvez, no mundo atual, sejamos ainda mais multifacetados, sujeitos a uma diversidade de estímulos e possibilidades que nos colocam em xeque permanentemente, nos fazendo perguntar: qual desses sou eu? onde está minha verdadeira essência? o que quero ser, para além dos papéis sociais que desempenho? E é isto que faz a psicologia contemporânea se perguntar, cada vez mais: existe, de fato, tal essência, para além das diversas formas como cada um se revela e se contrói, em cada diferente momento, em cada diferente contexto?
Guimarães Rosa discute essas questões com estilo, com uma prosa única e com a complexidade que elas exigem. É porque ele, Rosa-Riobaldo, conhece os perigos que o sertão esconde, que não se cansa de repetir que “viver é negócio muito perigoso...”. É por isso que ele tantas vezes reconhece e dá voz a um dos nossos mais primitivos sentimentos: o medo...

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