30 novembro 2006

O encolhimento do mundo


Uma das metáforas mais poderosas para caracterizar a sociedade contemporânea é a de “compressão do tempo-espaço”, proposta por David Harvey (1992), com a qual ele se refere a “processos que revolucionam as qualidades objetivas do espaço e do tempo a ponto de nos forçarem a alterar, às vezes radicalmente, o modo como representamos o mundo para nós mesmos” (p. 219). Tais processos incluem a aceleração do tempo e a diminuição das distâncias que acompanham a rápida circulação do capital; o desenvolvimento de meios de transporte cada vez mais eficientes; a criação de uma rede mundial de telecomunicações que transforma o planeta numa aldeia global; e as relações de interdependência econômica e ambiental, acompanhadas do surgimento de uma consciência ecológica internacional. Esses fenômenos sociais se refletem na idéia de que vivemos na “espaçonave Terra”; de que vagamos todos nessa imensa nave-mãe, e qualquer coisa que se faça em seu interior afetará a todos os passageiros.
A compressão do tempo-espaço inicia-se na Era Moderna, ganha impulso com a Revolução Industrial, e atinge um grau até então impensável nas últimas décadas. As mudanças nas concepções de tempo e espaço ocorreram lentamente a partir da decadência do feudalismo europeu, com suas estruturas cristalizadas e relativamente estáveis, quando as qualidades finitas do lugar – um território intrincado de interdependência, obrigação, vigilância e controle – eram acompanhadas de rotinas de vida cotidiana bastante estáveis e sedimentadas na tradição. O Iluminismo instaurou um projeto de vida social planejada e controlada, a fim de promover a igualdade social e o bem-estar de todos. Essa mentalidade racionalizadora do tempo e do espaço encontrou no mapa, no relógio e no calendário instrumentos particularmente úteis.
A partir de meados do séc. XIX a economia mundial toma o rumo de um globalismo ainda mais radical, marcado pela fase de aceleração e expansão do capitalismo, e alavancado por desenvolvimentos tecnológicos, como o surgimento de redes ferroviárias, jornais diários, comunicações por telégrafo, navegação a vapor e, mais adiante, o rádio e o automóvel. Já então, o “encolhimento” do mundo passa a criar desafios para a manutenção das identidades locais e do sentido de continuidade histórica. Tais mudanças parecem requerer uma maior plasticidade do eu diante das qualidades fragmentárias e polivalentes do espaço na sociedade contemporânea. Elas refletem-se na filosofia e na cultura da virada do século xx, com o surgimento de movimentos nas artes plásticas como o cubismo, o surrealismo e o futurismo, assim como, na música, com o dodecafonismo.

O encolhimento do mapa graças a inovações nos transportes que aniquilam o espaço por meio do tempo. Na figura, a progressão em que ocorre este encolhimento desde 1500, quando a locomoção era feita por barco a vela e carruagens, a uma média de 16 km/h, até o advento do avião a jato, em 1960, com velocidade de 1.100 km/h.

Referência: HARVEY, D. (1992) Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola.


29 novembro 2006

28 novembro 2006

Os vínculos de reconhecimento (III)

Continuação da série de artigos que venho publicando aqui (parte I, parte II), sobre a importância do reconhecimento do outro na construção da identidade.

Cultura local e cultura global: existe conflito?

Em tempos de globalização, tornam-se borradas e evanescentes as referências de tempo e espaço, próprias das sociedades tradicionais. De forma geral, as pessoas nasciam e morriam no mesmo lugar, permaneciam na mesma classe social, ocupavam tarefas e cargos dentro de uma comunidade que as conhecia e que servia de base para que cada um soubesse muito bem “quem era quem”. Hoje, os meios de comunicação e os meios de transporte tornam o mundo cada vez menor, e os lugares cada vez menos diferente dos demais. Além disso, o rompimento com as tradições culturais locais e o enfraquecimento do papel moderador da autoridade religiosa expõem a indivíduo ao desafio de manter um frágil equilíbrio entre o seu núcleo de identidade pessoal e as incontáveis alternativas de ser e estar num mundo onde tudo vale, tudo pode.

Como já foi dito na segunda parte deste artigo, a manutenção da identidade pessoal depende de um jogo entre duas forças opostas e complementares: a vontade de ser único e a vontade de fazer parte. Nas sociedades contemporâneas, a ênfase dos discursos vem recaindo progressivamente sobre a primeira parte da equação: ser único, ser individualista, ser exclusivo, ser original. Entretanto, ao mesmo tempo em a mídia impõe padrões cada vez uniformizantes de beleza, de moda, de consumo e de comportamento em geral, criam-se variações dos modelos, dissidências, e agrupamentos secundários por faixas etárias, por origens étnicas, ou por estilos de comportamento.

Além disso, existem mecanismos pelos quais as pessoas, e as sociedades locais, reagem às tendências globalizantes tanto da economia e da política, quanto da cultura. Afinal, não basta a ninguém se saber parte de um mundo único, ou seja, não é possível sentir-se “fazendo parte” apenas de uma grande sociedade humana, globalizada. Assim, as pessoas tendem a buscar sua identidade através de grupos menores e de segmentos sociais mais específicos. De fato, “globalidade” e “localidade” são dois extremos de um continuum, ou duas faces da mesma moeda. Tanto mais Florianópolis é invadida por imigrantes de outras partes do Brasil, em busca de melhor qualidade de vida, tanto mais a identidade de “manezinho da Ilha” e a cultura nativa são valorizadas.

É aí que entra a atual tendência ao neotribalismo e aos fundamentalismos religiosos e nacionalistas. O sociólogo Zymunt Bauman tem assinalado que a contemporaneidade é igualmente uma era de revalorização da comunidade e de um paradoxal apego às formas de filiação e pertencimento. Há uma reação diante do risco de fragmentação e homogeneização cultural. Mesmo em nosso meio existe o fenômeno das tribos urbanas, embora não tenha a magnitude dos grandes centros metropolitanos. Versões light do neotribalismo podem ser vistas, principalmente entre os adolescentes, na apropriação da moda e nas diferentes comunidades de interesses (os gls; os naturalistas, alternativos e ecológicos; os militantes políticos e engajados; os malhados, os surfistas, os desportistas de todo gênero; os funkeiros, os pagodeiros, ou a turma da mpb; os mais intelectualizados e os nerds, etc).

O processo de multiplicação de agrupamentos por interesses específicos, de comunidades e tribos urbanas, gera igualmente uma segmentação de mercado que, por sua vez, realimenta e perpetua o processo inicial. Surgem publicações cada vez mais específicas, dirigidas aos mais diferentes interesses; lojas de roupas e acessórios são cada vez mais direcionadas a segmentos específicos; bares, casas noturnas e locais de encontro se especializam. As pessoas são forçadas a encontrar a própria tribo e a consumirem aquilo que as identifica como membros de cada comunidade. Nas palavras de uma estudante universitária, “é terrível, porque quando não se quer pertencer a tribo nenhuma, ainda assim tu acabas sendo enquadrada em algum lugar, nem que seja porque um dia tu apareceste com uma roupa e alguém te chamou de alguma coisa, e assim ficou. Porque é necessário ser qualificado. Ninguém pode não ser simplesmente nada...”.

Em última instância, toda identidade é “grupal”. No entanto, o termo é utilizado geralmente para se referir aos aspectos mais evidentes das identificações com grupos ou comunidades. De fato, há um processo de dupla mão, no qual a comunidade reconhece o indivíduo como um dos seus, e o indivíduo reconhece os modelos fornecidos pela comunidade. Os membros de um grupo compartilham sistemas simbólicos e geralmente têm os mesmos tipos de experiências. Assim, as identificações grupais se constituem em estratégias de manutenção da segurança ontológica e de sobrevivência psíquica.

Num mundo marcado por intensas e profundas mudanças, as pessoas buscam e reforçam as identidades grupais de diferentes naturezas, inclusive aquelas criadas pelas novas tribos urbanas. Em todos os casos, é a busca por pertencimento e reconhecimento que está na raiz dos agrupamentos sociais.

27 novembro 2006

Grande Sertão: Veredas

Volto ao cinquentenário de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa, que foi notícia no Jornal Nacional de hoje. Postei aqui dois artigos originalmente publicados no Floripa Total (link ao lado) sobre este tema. Para quem não viu, aqui estão:

26 novembro 2006

A morte de Sócrates


Louis David, 1787. Óleo sobre tela, 130 x 196 cm, Metropolitan Museum of Art, New York
Ao lado de Poussin, Louis David é um dos mestres do classicismo francês do século XVIII que produziu grandes obras inspiradas em temas helênicos. Esta A morte de Sócrates é uma das mais conhecidas, e nela David transformou o que poderia ser apenas uma tocante cena de martírio num chamado à nobreza e ao auto-controle, mesmo em face da morte. Entre os discípulos que rodeiam Sócrates, Platão aparece, resignado e triste, de costas para o mestre, ao pé do leito.
Sócrates se opôs aos sofistas argumentando que existem parâmetros absolutos e transculturais de certo e errado, bom e mau. Pode ser considerado um dos fundadores da noção ocidental de sujeito, na medida que atribuiu à consciência individual a responsabilidade pelas opções éticas. Acreditou que o cosmos sustenta-se sobre a bondade, e que a pessoa boa não tem porque temer a morte. Abaixo, trecho do discurso que proferiu pouco antes de morrer (conforme o relato de Platão), após ter sido condenado à morte pelos cidadãos atenienses, sob a acusação de corromper a juventude. O método de execução foi incomum em seu tempo: tomar uma taça de cicuta.

Aqueles que acreditam que a morte seja algo ruim estão errados. Há boas razões para acreditarmos que a morte seja boa, e eis duas: ou a morte é um estado de nada, ou, como dizem, há uma mudança ou migração da alma deste para outro mundo. Se você supuser que não haja consciência, mas um sono como quem dorme sem ser incomodado por sonhos, a morte será um indizível benefício. Mas se a morte for jornada a outro lugar, e lá, como dizem, todos os mortos são bons, o que daria um homem para poder conversar com Hesíodo e Homero?... A hora de partir chegou, e seguiremos nossos caminhos – eu o da morte, vocês o da vida. Qual o melhor, apenas Deus sabe.


25 novembro 2006

Pensamento chinês



Ideograma: lógica, poesia, linguagem.


Haroldo de Campos (um dos expoentes da poesia concreta) organizou esse livro, editado pela EDUSP em 1994, que ajuda a desvendar alguns dos mistérios dos ideogramas e da forma de pensar dos chineses. É também dele a tradução deste ensaio que faz parte da coletânea, publicado originalmente em 1939, do qual faço aqui um resumo.

A TEORIA DO CONHECIMENTO DE UM FILÓSOFO CHINÊS

Chang Tung-Sun

I

Os problemas filosóficos do Ocidente não são exatamente os mesmo que ocupam o espírito dos filósofos chineses. Parece haver certa diferença entre os processos intelectuais chineses e os ocidentais. A teoria ocidental considerou o conhecimento como conhecimento universal da Humanidade, quando na realidade trata-se apenas de um tipo de conhecimento, existindo outros tipos em outras culturas.

Em resumo: é preciso tratar simultaneamente a teoria do conhecimento e a história cultural; não é apenas o pensamento social concreto que tem um fundamento social: as formas lógicas e as categorias teóricas também têm seus determinantes culturais; a diferença entre o pensamento ocidental e o oriental pode ser explicada a partir desse ponto de vista; e, a partir daí, pode-se compreender que a Filosofia ocidental é apenas uma forma particular de conhecimento característica da cultura ocidental e para uso dela.

II

Existe uma diferença entre o conhecimento perceptivo e o conceitual. O conhecimento conceitual é conhecimento interpretativo, e este é conhecimento teórico. A Ciência é uma síntese de dois tipos de conhecimento, sendo um a observação direta, e o outro a interpretação. Nenhum conhecimento pode dispensar seu conteúdo social, cuja emergência e existência só ocorrem no campo do conhecimento interpretativo.

III

Linguagem e pensamento são fundamentalmente inseparáveis. Todo pensamento, para articular-se, só o poderá fazer através da linguagem ou do símbolo. Se o pensamento se desenvolve com a linguagem e a linguagem é uma forma de comportamento social, então fica claro que, com exceção dos elementos experimentais, todo conhecimento é social.

IV

Com a gramática e a estrutura da frase surge a lógica. Os lógicos ocidentais consideram que a Lógica refere-se ao conjunto de regras do raciocínio humano. De fato, a Lógica aristotélica, que lhe deu origem, baseia-se evidentemente na gramática grega. O tipo de proposição “sujeito-predicado” não existe na Lógica chinesa. Por exemplo, não é possível escrever algo como “A se relaciona com B”. O que é possível é a seqüência de três caracteres, para indicar respectivamente “A”, “conexão”, e “B”.

V

A Lógica aristotélica está intimamente ligada ao verbo “ser”, de onde deriva uma “lei da identidade”. Nela, a substância é um simples derivado do sujeito e do verbo “ser”, que leva à idéia de “ente”. Um atributo deve ser atribuído a uma substância, de modo que a idéia de substância é absolutamente indispensável ao pensamento, assim como o sujeito é absolutamente indispensável à linguagem.

Na língua chinesa o sujeito não é essencial, e não existe nenhum verbo “ser” comparável à forma inglesa e das demais línguas indo-européias. Assim, o idioma chinês está repleto de frases com sujeito indefinido, como “havendo dedicação à benvolência, não há maldade”.

VI

O sistema chinês de lógica - se é que existe um - não está baseado na lei da identidade. Enquanto na lógica ocidetantal pensa-se em termos de "A e não-A", dando ênfase à exclusão, o pensamento chinês enfatiza a qualidade relacional entre acima e abaixo, bem e mal, alguma coisa e nada. Ele usa figuras de linguagem como "o uso inverso de uma palavra" e o "uso metafórico". Por exemplo, o conceito mais importante na China antiga referia-se a "céu" (t'ien), que tem como definição a "cabeça humana", ou tudo que fica acima da cabeça. Este é um método "indicativo".

No chinês , a lógica da exclusão dá lugar à "lógica de correlação" ou a uma "lógica da dualidade correlativa", que enfatiza o significado relacional entre "algo" e "nada", "cima" e "abaixo", etc. A explicação da palavra "vender", por exemplo, é dada por seu oposto "comprar". Por serem ideográficos, os caracteres enfatizam os signos, e o chinês interessa-se pelas inter-relações entre estes, sem se preocupar com a substância que lhes fica subjacente.

VII

A natureza ideográfica dos caracteres chineses influencia não somente a estrutura da linguagem, mas também o pensamento ou filosofia do povo. De acordo com o antigo pensamento chinês, primeiro vieram os signos e depois engendraram-se e desenvolveram-se as coisas (ao contrário da visão platônica). A característica do pensamento chinês é a atenção exclusiva às implicações correlacionais entre os diferentes signos, como yin e yang. Na China não há sequer a palavra substância.

VIII

Como a noção de substância se relaciona com a de causalidade, as Ciências ainda são determinadas, em sua maior parte, pelo conceito de causalidade. No pensamento ocidental, religião, Ciência, e materialismo são interdependentes. Compreende-se que com a identidade dever haver substância; com a substância, deve haver causalidade; e o átomo fica entre as duas. Na China, Céu e Deus não são pensados de maneira primordial. A união dos dois ideogramas tem o significado de Providência, não sendo uma entidade, tampouco uma substância. A lógica da correlação, a classificação não-exclusiva, a definição analógica têm, como fundo comum, o pensamento político, que é característico da cultura chinesa. [Este e os próximos tópicos necessitam uma leitura mais detalhada para sua melhor compreensão, sendo difícil resumí-lo em virtude da complexidade do tema.]

IX

É característico da mentalidade ocidental sempre se perguntar antes "o quê" é alguma coisa, enquanto a mentalidade chinesa dá ênfase ao "como". Enquanto o primeiro tipo de pensamento é mais apropriado para a passagem da religião à Ciência, o segundo só pode se desenvolver na esfera sociopolítica. Isto explica porque o pensamento chinês se descuida da Natureza, e volta-se mais aos assuntos Humanos. O pensamento chinês recorre mais à analogia do que a inferência. É típico disto a fórmula jen che jen jeh (algo como "Humanidade assim como homem"). Trata-se de uma "lógica de analogia", pouco apropriada para o pensamento científico, mas amplamente utilizada nas argumentações sociopolíticas.

X

Enquanto nas línguas ocidentais existem transformações gramaticais fonéticas, no chinês elas são ideográficas. Assim, a palavra inglesa sense pode assumir as seguintes formas: sense (senso, juízo), sensation (sensação), sensational (sensacional), sensible (sensato), sensibility (sensibilidade) [o autor menciona ao todo 14 palavras]. Em virtude do uso de flexões, casos, ou outras formas gramaticais, a "forma" constitui um elemento essencial para o pensamento do Ocidente. Os caracteres chineses, apesar de terem radicais, não tem raízes. Os radicais são utilizados apenas com finalidade classificatória; por exemplo, certas palavras pertencem ao domínio da água e outras ao domínio das plantas. Os ideogramas chineses não ficam sujeitos a transformações gramaticais; não há flexão, declinação nem conjugação.

XI

[O autor encerra o ensaio com sua proposta de uma teoria do conhecimento, e o seguinte comentário, que reproduzo na íntegra.] Se o leitor tiver tido a paciência de acompanhar toda a nossa análise, talvez lhe tenha parecido que o autor descambou para o ecletismo. Há, porém, ecletismo e ecletismo. Se o ecletismo se revelar útil, oferecendo uma visão mais sintética de todos os problemas tratados, não terão cabimento muitos pedidos de desculpas.


Pode interessar também:
The Topography Of Language

Calvin & Hobbes

by Bill Watterson

24 novembro 2006

Goiabas, etc

A revista Piauí continua mandando bem, neste segundo número. Um bom exemplo do seu humor inteligente é o ensaio final, desta vez por conta de SAULO TH. PEREIRA DE MELO ("sweet maker"). Na forma de uma carta de amor, ele nos ensina a fazer uma goiabada come il faut. Essa receita veio a calhar para mim, que estou vivendo uma fase, digamos, bem Romeu e Julieta. Como sou doido por goiabada (principalmente a legítima mineira), deixo também aqui uma dica culinária, bem prosaica, por sinal: o novo sorvete de goiaba com nata da Kibon é uma delícia! Se quiser torná-lo ainda melhor, pegue essa goiabada que você vai aprender a fazer (ou pode comprar uma pronta, se achar mais fácil), derreta-a misturando com um pouco de água em fogo brando, até fazer uma calda, e derrame-a sobre o sorvete. Ecco li, un bello "caldo e fredo"!
Transcrevo abaixo o trecho inicial do ensaio:

TRATADO GERAL DA GOIABADA

An essay concerning the making of a good goyabada

Perguntavas-me muitas vezes por que eu fazia uma goiabada tão gostosa — e pedias a receita. Eu dizia que, como Leibniz, eu gostava de ter prazer no prazer do ser amado: tu. “E a receita?” — eu eludia a questão: não há receita, há um “procedimento”. Ademais, querida, dona do meu coração, este procedimento é Alchímico (com ch é mais bacana…). Fazer uma boa goiabada é como fazer L’oeuvre en Noir — fazer ouro. Ou a Philosophical Stone, l’élixir de vie e a Universalmittel. Veja só a importância de uma boa goiabada. Aprendi o procedimento, escrito em linguagem hermética, no Necromicron, aquele livro maldito que nunca existiu e que o Lovecraft me emprestou e eu devolvi. Mandei por sedex, para ele, em Providence, antes de eu nascer e depois de ele morrer.

Então, por amor a ti e enfrentando todas as maldições, ameaças e feitiços da Kabbala — aí vai, mas tenho que perguntar, tal como O Coelho Branco, para o Rei (ou será a Rainha?): “Where shall I begin, please, your Majesty?” E o Rei (ou a Rainha), do alto de sua sabedoria real, disse “very gravely”: “Begin at the beginning [you ass] and go on till you come to the end: then stop.”

E assim, seguindo o mais sábio, ilustre, real e lógico conselho — começo pelo começo. E o começo da goiabada é a goiaba!

23 novembro 2006

Lexicon (3)

CIÚME
Reação normal (com variados graus de intensidade), traço de personalidade ou expressão de doença, o ciúme é marcado por nuances de dor, insegurança, rejeição, muitas vezes desejo e até planos de vingança, ainda que apenas no âmbito da fantasia. Etimologicamente, a palavra ciúme tem entre seus sinônimos o vacábulo zelos (no plural), originário da evolução fonética do latim vulgar zelúmem, o qual, por sua vez, veio do grego, zelosus, que deu origem a jealous (ciumento) e jealousy (ciúme), em inglês, e, com os mesmos sentidos, jaloux e jalousie, em francês. Origem idêntica é encontrada no italiano geloso e no espanhol celoso.
Zelo, no singular, é apresentado também com outro significado: cuidar, tomar conta para que algo ou alguém por quem se tem apreço não se perca ou seja roubado. Embora zeloso não seja o mesmo que ciumento, transmite a idéia de propriedade agregada à afeição, que entra na conceituação primeira de ciúme. Medo de perda e ansiedade dão o tom de aflição e sofrimento que acompanha o ciúme. Em alemão, a palavra Eifersucht (ciúme) faz alusão ao fogo, a queimar. Eifer remonta à raiz indogermânica ai=arder, e sucht é um termo antigo usado para designar doença, dependência. Eifersucht, portanto, é a doença que arde.
Fonte: viver mente&cérebro, nov 2006, p. 54.
Lexicon (2)

22 novembro 2006

A hora da estrela


1977

Clarice Lispector escreve um livro para crianças, que seria publicado em 1978, sob o título Quase de verdade. Escreve, ainda, doze histórias infantis para o calendário de 1978 da fábrica de brinquedos "Estrela", intitulado Como nasceram as estrelas. Vai à França e retorna inesperadamente. Publica A hora da estrela, pela José Olympio. Esse livro seria adaptado para o cinema, em 1985, por Suzana Amaral. A editora Ática lança nova edição de A legião estrangeira. Clarice morre, no Rio, no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes do seu 57° aniversário vitimada por uma súbita obstrução intestinal, de origem desconhecida que, depois, veio-se a saber, ter sido motivada por um adenocarcinoma de ovário irreversível.
Frases de A hora da estrela
Sobre a vida:
Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o que, mas sei que o universo jamais começou.
Sobre identidade:
Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não se acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois, quem cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar.
Mas vivia de tanta mesmice que de noite não se lembrava do que acontecera de manhã. Vagamente pensava de muito longe e sem palavras: já que sou, o jeito é ser.
Sobre escrever:
Ainda bem que o que eu vou escrever já deve estar de algum modo escrito em mim. Tenho é que me copiar com uma delicadeza de borboleta branca.

Para saber mais sobre Clarice Lispector clique aqui.

Adendo de 21/05/2010:
Excelente a biografia recém-lançada no Brasil, Clarice, do escritor americano Benjamin Moser. Mais sobre o livro e a escritora no blog da editora CosacNaify.



Apanhei-te Cavaquinho


Aproveito mais este achado de um de meus consultores para assuntos musicais, o caro João David (link ao lado). Ele postou uma bela interpretação de Armandinho e Yamandú desse clássico composto por Ernesto Nazareth: a sua "Melodia No. 28: Apanhei-te, Cavaquinho”, de 1915 (clique aqui para ver e ouvir).

Dentre as composições de Nazareth (foto abaixo), a polca “Apanhei-te, Cavaquinho” é a segunda mais gravada, perdendo apenas para “Odeon”.
Por que um pianista intitularia uma de suas peças “Apanhei-te, Cavaquinho”? Segundo o biógrafo de Nazareth, Luiz Antônio de Almeida, o compositor estava imitando o som do cavaquinho no acompanhamento da mão esquerda e o da flauta na melodia tocada pela mão direita. Nazareth nunca quis que o “Apanhei-te, Cavaquinho” fosse tocado de modo tão rápido como é executado pela maioria dos músicos. Aliás, ele dizia que “toda a minha música é estropiada. Eles tocam tão depressa. O ‘Apanhei-te, Cavaquinho’ é um desastre. Ele é bem devagar, arpejando a mão esquerda, dando a impressão de cavaquinho.” Ele tocava tudo lento, e bem claro, com uma técnica bem apurada.
É interessante notar que Nazareth já reclamava da velocidade em 1917, enquanto que, na edição da partitura editada em 1926 pela Irmãos Vitale, o “celebre chôro” (não mais chamado de polca, por questões relacionadas à moda) ainda vem com a recomendação “Muito proprio para serenata.” (Clique aqui para saber mais)

Ilustração: Cavaquinista (detalhe de"Chorinho" de Portinari).


20 novembro 2006

19 novembro 2006

photo


(fotoERCY, 2006)

18 novembro 2006

São Paulo na ponta do lápis












O mapa é de 1972, mas vale a pena navegá-lo!

16 novembro 2006

ideo-grama



Ideograma: (do grego ιδεω - idéia + γράμμα - caracter, letra)
é um símbolo gráfico utilizado para representar uma palavra ou conceito abstrato.
Os
sistemas de escrita ideográficos originaram-se na antiguidade, antes dos alfabetos e dos abjads.
Como exemplos de escritas ideográficas, podemos citar os
hieróglifos do antigo Egito, a escrita linear B de Creta e a escrita maia, assim como os caracteres kanji utilizados em chinês e japonês.

The Topography Of Language

Borges

Devo a Jorge Luis Borges um post neste blog:
Devo a ele, além do prazer da leitura, uma metáfora que utilizo no livro em preparação, sobre Psicoterapia e Sociedade Contemporânea. No momento em que discuto as características da sociedade globalizada e o contexto cultural da pós-modernidade, é a um de seus mais fantásticos contos - El Aleph - que remeto: .
Transcrevo a seguir segmentos de meu texto e, mais abaixo, a parte do conto em que Borges descreve o Aleph.

Na condição pós-moderna ganha ainda mais força a idéia de que “tudo que é sólido desmancha no ar”, a célebre expressão de Marx para definir os tempos modernos. Vivemos num mundo em que a lógica da produção e distribuição das mercadorias está calcada na ênfase na instantaneidade e descartabilidade. O bombardeio de estímulos, através da propaganda e da multiplicação das imagens, da cultura do simulacro, leva a uma verdadeira sobrecarga sensorial. A volatilidade e a efemeridade dificultam igualmente a manutenção do senso de continuidade. O encolhimento do espaço por meio do tempo se faz através das tecnologias de transmissão de imagens e informação, mas também pela maior facilidade de deslocamento concreto de pessoas e mercadorias. Como conseqüência geral desse processo vive-se uma cultura do ecletismo e da mistura, podendo-se ter acesso simultâneo, principalmente nos centros urbanos, a hábitos alimentares, práticas religiosas, e manifestações artísticas de culturas as mais diversas. É hoje possível conhecer o mundo através dos simulacros, e estar em toda parte ao mesmo tempo.

A criação da rede de televisão CNN¸ e a subseqüente popularização das redes de tv a cabo, adquire significação histórica a partir dessa óptica. Graças aos satélites e à transmissão por fibras óticas, o espaço deixa de ser aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar, sujeitando-se ao um confinamento brusco que faz da tela da tv um espaço sem localização. Vivemos, em certa medida, a experiência cotidiana do Aleph, a genial expressão literária da ubiqüidade segundo Jorge Luis Borges: “um dos pontos do espaço que contém todos os pontos [...] o lugar onde estão, sem se confundir, todos os lugares da orbe, vistos de todos os ângulos” (Borges, 1989a, p. 623).

Arribo, ahora, al inefable centro de mi relato, empieza aquí, mi desesperación de escritor. Todo lenguaje es un alfabeto de símbolos cuyo ejercicio presupone un pasado que los interlocutores comparten; ¿cómo transmitir a los otros el infinito Aleph, que mi temerosa memoria apenas abarca? Los místicos, en análogo trance prodigan los emblemas: para significar la divinidad, un persa habla de un pájaro que de algún modo es todos los pájaros; Alanus de Insulis, de una esfera cuyo centro está en todas partes y las circunferencia en ninguna; Ezequiel, de un ángel de cuatro caras que a un tiempo se dirige al Oriente y al Occidente, al Norte y al Sur. (No en vano rememoro esas inconcebibles analogías; alguna relación tienen con el Aleph.) Quizá los dioses no me negarían el hallazgo de una imagen equivalente, pero este informe quedaría contaminado de literatura, de falsedad. Por lo demás, el problema central es irresoluble: La enumeración, si quiera parcial, de un conjunto infinito. En ese instante gigantesco, he visto millones de actos deleitables o atroces; ninguno me asombró como el hecho de que todos ocuparan el mismo punto, sin superposición y sin transparencia. Lo que vieron mis ojos fue simultáneo: lo que transcribiré sucesivo, porque el lenguaje lo es. Algo, sin embargo, recogeré.
En la parte inferior del escalón, hacia la derecha, vi una pequeña esfera tornasolada, de casi intolerable fulgor. Al principio la creí giratoria; luego comprendí que ese movimiento era una ilusión producida por los vertiginosos espectáculos que encerraba. El diámetro del Aleph sería de dos o tres centímetros, pero el espacio cósmico estaba ahí, sin disminución de tamaño. Cada cosa (la luna del espejo, digamos) era infinitas cosas, porque yo claramente la veía desde todos los puntos del universo. Vi el populoso mar, vi el alba y la tarde, vi las muchedumbres de América, vi una plateada telaraña en el centro de una negra pirámide, vi un laberinto roto (era Londres), vi interminables ojos inmediatos escrutándose en mí como en un espejo, vi todos los espejos del planeta y ninguno me reflejó, vi en un traspatio de la calle Soler las mismas baldosas que hace treinta años vi en el zaguán de una casa en Frey Bentos, vi racimos, nieve, tabaco, vetas de metal, vapor de agua, vi convexos desiertos ecuatoriales y cada uno de sus granos de arena, vi en Inverness a una mujer que no olvidaré, vi la violenta cabellera, el altivo cuerpo, vi un cáncer de pecho, vi un círculo de tierra seca en una vereda, donde antes hubo un árbol, vi una quinta de Adrogué, un ejemplar de la primera versión inglesa de Plinio, la de Philemont Holland, vi a un tiempo cada letra de cada página (de chico yo solía maravillarme de que las letras de un volumen cerrado no se mezclaran y perdieran en el decurso de la noche), vi la noche y el día contemporáneo, vi un poniente en Querétaro que parecía reflejar el color de una rosa en Bengala, vi mi dormitorio sin nadie, vi en un gabinete de Alkmaar un globo terráqueo entre dos espejos que lo multiplicaban sin fin, vi caballos de crin arremolinada, en una playa del Mar Caspio en el alba, vi la delicada osadura de una mano, vi a los sobrevivientes de una batalla, enviando tarjetas postales, vi en un escaparate de Mirzapur una baraja española, vi las sombras oblicuas de unos helechos en el suelo de un invernáculo, vi tigres, émbolos, bisontes, marejadas y ejércitos, vi todas las hormigas que hay en la tierra, vi un astrolabio persa, vi en un cajón del escritorio (y la letra me hizo temblar) cartas obscenas, increíbles, precisas, que Beatriz había dirigido a Carlos Argentino, vi un adorado monumento en la Chacarita, vi la reliquia atroz de lo que deliciosamente había sido Beatriz Viterbo, vi la circulación de mi propia sangre, vi el engranaje del amor y la modificación de la muerte, vi el Aleph, desde todos los puntos, vi en el Aleph la tierra, vi mi cara y mis vísceras, vi tu cara, y sentí vértigo y lloré, porque mis ojos habían visto ese objeto secreto y conjetural, cuyo nombre usurpan los hombres, pero que ningún hombre ha mirado: el inconcebible universo.
Sentí infinita veneración, infinita lástima.

Clique aqui para ler o conto na íntegra.


14 novembro 2006

Drexler una vez más





Para conhecer o novo álbum de Jorge Drexler - 12 segundos de oscuridad - e ouvir trechos de três canções, clique na foto


Clique aqui para ouvir na íntegra a fantástica canção Mi guitarra y vos, do CD eco2 (sobre Drexler, veja também o post do dia 21 de outubro).

13 novembro 2006

A evolução do ciúme


Com base em pistas sobre o modo de vida ancestral, a psicologia investiga as trilhas evolutivas do ciúme e as razões das diferenças sexuais na expressão desse sentimento.
Baseado no artigo de Christine R. Harris
A psicologia evolutiva procura explicar as características da mente humana a partir das pressões seletivas que atuaram sobre nossos ancestrais. Seguindo esse caminho, vários psicólogos evolucionistas têm proposto a existência de um módulo emotivo-afetivo inato, no sistema nervoso dos humanos, associado ao ciúme. Este módulo tornaria os homens mais predispostos ao ciúme por infidelidade sexual da parceira, enquanto as mulheres estariam predispostas ao ciúme relacionado à traição emocional do parceiro.
Essa idéia tornou-se tão mais forte a partir de leituras apressadas dos experimentos conduzidos pelo psicólogo David Buss, da Universidade do Texas, no início da década de 1960. Ele realizou várias investigações com universitários, utilizando o método de escolha forçada. Pedia aos participantes que imaginassem seu parceiro ou parceira fazendo sexo fora da relação, ou apaixonados por outra pessoa, e que escolhecem qual a pior alternativa.
Os resultados pareciam apontar consistentemente na direção já mencionada: até 60% dos homens relatavam que a infidelidade sexual seria pior, e mais de 70% da mulheres escolhiam o envolvimento emocional do parceiro como pior alternativa. Essas conclusões foram finalmente submetidos a várias metanálises e contraprovas, e não parecem ser tão definitivas quanto se acreditava. Uma das primeiras descobertas foi de que essas diferenças parecem diminuir bastante com o aumento da idade e entre homossexuais, assim como não aparecem em outros contextos culturais diferentes do norte-americano.
No caso dos homens, a principal ressalva está na possibilidade de um erro de interpretação, que vem sendo chamado de "tiro duplo". Os homens achariam a infidelidade sexual mais insuportável porque a mulher não faria sexo com outro homem se não estivesse apaixonada por ele. As mulheres, por sua vez, sabem que os homens fazem sexo mesmo quando não há relação de afeto.
A autora, que é pesquisadora da Universidade da California em San Diego, foi uma das revisoras da teoria de que existe um módulo inato do ciúme diferente para cada sexo. Segundo ela, as pesquisas sugerem que não há diferenças importantes entre os sexos na expressão dessa emoção no contexto conjugal. As diferenças sexuais que de fato existem parecem refletir desigualdades mais no juízo cognitivo que na estrutura física de cada sexo.
Fonte: A evolução do ciúme, em viver mente e cérebro de nov. 2006.

O ciúme









O ciúme, litografia de
Edvard Munch (1896)



O CIÚME
Composição: Caetano Veloso

Dorme o sol à flor do Chico, meio-dia
Tudo esbarra embriagado de seu lume
Dorme ponte, Pernambuco, Rio, Bahia
Só vigia um ponto negro: o meu ciúme
O ciúme lançou sua flecha preta
e se viu ferido justo na garganta
Quem nem alegre nem triste nem poeta
Entre Petrolina e Juazeiro canta
Velho Chico vens de Minas
De onde o oculto do mistério se escondeu
Sei que o levas todo em ti, não me ensinas
Eu sou só, eu só, eu só, eu
Juazeiro, nem te lembras dessa tarde
Petrolina, nem chegaste a perceber
Tudo é perda, tudo quer buscar, cadê
Tanta gente canta, tanta gente cala
Tantas almas esticadas no curtume
Sobre toda estrada, sobre toda sala
Paira, monstruosa, a sombra do ciúme


12 novembro 2006

Lexicon (2)

Começo postando a coluna do genial Millôr, publicada em Veja desta semana:

Lula recebeu 58 295 042 votos.
Alckmin recebeu 37 543 178 votos

CUM LAUDE
O país está grávido de encômios.
Os encômios pariram encomiastas. Panegiristas, filhos adotivos, aquiescentes e louvaminheiros.
Em toda parte se ama e agasalha, bendito é o fruto, se dão abonos, se tocam hinos, se magnifica, se apoteosa. Há os que bajulam, os que sabujam, salamalecam, fazem zumbaias, usam blandícias, deitam-se aos pés, brandem turíbulos: turiferários. E eles, rindo – que bom é o incenso!, me tragam loas, peixes e broas, teçam coroas, se alce e exalce, bravo, apoiado, bom prol nos faça!
Faltam sardônicos nas ante-salas.

"E o cordão dos puxa-sacos Cada vez aumenta mais."
Frazão e Roberto Martins

Basta dessa inutilidade de voto em branco e voto nulo.
O país deve adotar imediatamente o VOTO CONTRA.
A verdadeira, e simples, revolução democrática


Agora, vamos por partes:
Cum laude: com honra, de maneira elogiosa
Encômio: elogio
Enconomiasta: entusiasta
Panegirista: a pessoa que faz panegíricos, ou seja, discursos laudatórios, elogios públicos
Aquiescente: que aquiesce, concorda
Louvaminheiro: que tem por hábito louvaminhar (em claro português: puxa saco)
Bajular: o que fazem os louvaminheiros
Sabujar: bajular, adular
Salamecar: idem (não dicionarizado, provavelmente proveniente da saudação árabe: Salam Aleikum!)
Zumbaia: salamecação
Blandícia: afago, carinho
Turíbulo: incensário, vaso onde se queima insenso
Turiferário: aquele que leva o turíbulo nas solenidades religiosas
Loa: o mesmo que panegírico
Exalçar: exaltar
Sardônico: sarcástico

Pronto, o conselho está dado!

Lexicon (1)

Atitudes

Charlie Brown, by Schulz

11 novembro 2006

Lexicon

lexicon
1603, "a dictionary," from Mod.L., from Gk. lexikon (biblion) "word (book)," from neut. of lexikos "pertaining to words," from lexis "word," from legein "say" (see lecture). Used originally of dictionaries of Gk., Syriac, Hebrew and Arabic, since these usually were in Latin and in Mod.L. lexicon, not dictionarius, was the preferred word. The modern sense of "vocabulary proper to some sphere of activity" (1647) is a fig. extension.
alexitimia
Neologismo criado pelo psicanalista Peter Sifneos, da Harvard Medical School, para designar a incapacidade (a) de expressar em palavras (lexi) os sentimentos ou estados de humor (timia). Pessoas alexitimicas são particularmente propensas a desenvolverem somatizações, ou expressarem através dos atos (atuações) aquilo que se passa na vida anímica.
Nas palavras do próprio Sifneos:
Esta maneira utilitária de pensar, associada a uma vida de fantasia pobre, uma tendência à ação impulsiva e incapacidade de usar palavras apropriadas para descrever sentimentos foi o que denominei "alexitimia". Em nossa experiência, bem como na de outros investigadores, a "alexitimia" ocorre com bastante freqüência em pacientes que sofrem de doenças psicossomáticas, mas pode também ser encontrada em indivíduos que não estejam medicamente doentes (Psicoloterapia psicodinâmica breve, Artes Médicas, 1989, p.52).
prolixidade
Dispensa explicações!

Piccolo, grande, vivo










Estas figuras são as portas de entrada para dois universos paralelos: um "micro", dos insetos, e um "macro", da geografia terrestre. Sobre o que se passa entre os extremos do que é infinitamente grande e do que é infinitesimamente pequeno, o italiano Piero Bianucci - um jornalista da área de divulgação científica - escreveu um interessante livro: Piccolo, grande, vivo: storie di quark e di galassie, di uomini e altri animali.
Os fragmentos abaixo são da introdução do livro:
O quark é a menor partícula que o homem conseguiu descobrir até agora. O universo, som suas milhares de galáxias, é obviamente o maior objeto que se conhece. Partindo do extremamente pequeno pode-se chegar ao extremamente grande em quarenta passos, cada qual dez vezes mais longo do que o precedente. Nesta hierarquia das dimensões exploradas pela ciência, o homem e os demais seres viventes estão a meio caminho, numa zona onde a natureza reuniu, até onde sabemos, a máxima complexidade. A ciência nasce com a medida. Sem uma idéia de proporções dos objetos que nos cercam, somos navegantes sem coordenadas. Estamos à deriva. Numa escala de 10 metros na segunda potência negativa, por exemplo, no domínio dos centímetros, encontramos uma tecla de máquina de escrever, os botões, um cogumelo, um caramujo, a espuma de um sabonete. Mas é preciso pouco para chegar a paisagens muito mais exóticas. Já na escala de 10 metros na quarta potência negativa a pele se torna um irreconhecível relevo de colinas acavaladas, a vida animal é representada por radiolari, minúsculos organismos marinhos de geometria elegantíssima, os sulcos de um disco se parecem a um canyon tortuoso, onde cada relevo corresponde à vibração de uma corda de violino ou ao toque de uma clave de clarinete ou a um fragmento de canto humano.
O
quark é a menor partícula que já se conseguiu individualizar. Há um modelo teórico que supõe serem os quark gerados por partículas ainda menores, os rishoni, uma palavra hebraica que significa primário. Os rishoni seriam um milhão de vezes menores que os quark. Mas, já que por enquanto pertencem à fantasia ciéntífica, não à experimentação, vamos passar adiante.
O universo, com suas milhares de galáxias, cada qual feita de centenas de milhares de estrelas, é obviamente o maior objeto que se conhece. Os modelos inflacionários prevêem que no
Big Bang tenham se originado muitos universos não comunicáveis entre si, e portanto seria possível se hipotetizar um meta-universo que compreende todos os universos. Mas mesmo este não passa de pura acrobacia mental, e não nos ocuparemos dele. O universo do qual se tem experiência já é suficientemente vasto.

Obs. Os objetos utilizados pelo autor como escala - que remetem à máquina de escrever e ao disco de vinil - denotam que o livro foi escrito há pelo menos duas décadas. Nem por isto deixa de ter seu encanto e de aguçar a curiosidade e a perplexidade diante dos mistérios do tempo e do espaço. Boa viagem por esses dois pequenos segmentos do Universo!

10 novembro 2006

A metamorfose


Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu ? - pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas: Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada.
É deste modo que Kafka inicia a estória de Gregor Samsa, publicada em 1912, quando o autor contava vinte e nove anos. É um de seus poucos romances que foram finalizados e publicados, e é marcado pela sua forma peculiar de compor literatura. A partir de sua metamorfose, Samsa passa a viver uma nova rotina, na qual deve permanecer em casa e à distância de qualquer visita. O trabalho, obviamente, é abandonado e seu quarto se transforma em todo o seu mundo.
A estória de Samsa é uma alegoria da vida de um homem comum que exerce atividades burocráticas. Já nesta novela o termo "kafkiano", associado ao que é inusitado ou absurdo, está plenamente justificado. Os aspectos autobiográficos também estão presentes. Conta-se que Kafka, quando chegava em casa depois do trabalho (nada mais que um conjunto de rotinas burocráticas), deitava-se no sofá da sala e comentava que se sentia como um grande inseto, referindo-se às limitações impostas ao uso de sua criatividade. Na estória, o grande inseto, deitado em sua cama, esperneia-se tentando voltar à posição natural, com as asas para cima e as pernas para baixo, na qual teria domínio de seus movimentos. O clima mantido por Kafka antecipa as situações de outras de suas obras, em grande parte inacabadas, em que é caracterizado um ambiente de angústia e de desconcerto, atribuído por muitos ao início da era que culminaria com a ascensão de Hitler e com a Segunda Guerra Mundial.

Para ver a versão de Kuper animada, clique na ilustração ao lado.
Este clássico da literatura estrangeira foi adaptado para o formato de quadrinhos, pelo aclamado artista gráfico Peter Kuper. O estilo de Kuper, uma fusão dos quadrinhos norte-americanos com o expressionismo alemão, faz com que a prosa de Kafka ganhe vida, revivendo todo o humor e sagacidade do texto original de uma forma que irá surpreender tanto os leitores de Kafka quanto os leitores de graphic novels.
Certamente, como afirma o quadrinhista Peter Kuper, "os personagens angustiados de Kafka em cenários de realidade alterada são feitos sob medida para essa mídia." E, para ilustrar as palavras iluminadoras de Kafka, Peter Kuper buscou inspiração nos desenhos quase surrealistas de Winsor McCay, o criador da tira Dream of the Rarebit Fiend (em português, literalmente, Sonho do viciado em queijo gratinado), publicado pelo jornal nova-iorquino Evening Telegram.
A habilidade de Franz Kafka em abordar a condição humana com reviravoltas inesperadas e brilhante talento faz com que seu trabalho se mantenha atual mesmo quase um século depois, como se tivesse sido criado para refletir o clima da era em que vivemos. "Suas histórias de julgamentos grotescos e burocracias inflexíveis não parecem mais surreais que as manchetes que vemos nos jornais diários", enfatiza Peter Kuper.
O livro foi editado também no Brasil.
Para conhecer o The Kafka Project, clique na lápide:

09 novembro 2006

08 novembro 2006

O ser-tão grande


Em maio deste ano fez cinqüenta anos que foi publicada aquela que é considerada por muitos a maior obra de ficção já escrita por um brasileiro, o livro Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Médico, diplomata e escritor, Guimarães Rosa foi um inovador no uso da língua portuguesa e homem de grande cultura. Seu jeito peculiar de escrever combina o linguajar simples do sertanejo com o uso de neologismos, palavras inventadas a partir de outras, provenientes dos muitos idiomas – vivos e mortos – que dominava. Rosa deu voz à sabedoria popular, ao mesmo tempo em que imprimia enorme profundidade filosófica à sua prosa.
Ler Guimarães Rosa é um aprendizado, e não são poucos os que desistem nas primeiras tentativas. Depois que se aprende, entretanto, torna-se uma paixão, e sua obra pode propiciar inesgotáveis descobertas e novas interpretações ao leitor. As três leituras completas que fiz (além nas inúmeras leituras parciais) do Grande Sertão, desde o início da década de oitenta, foram, cada uma delas, fonte de renovado prazer. A estória já foi transformada em mini-série pela Rede Globo, em 1986, e muitos hão de lembrar-se do Riobaldo (o jagunço que no livro conta sua vida a um interlocutor invisível) vivido por Toni Ramos, de Diadorim, representado por Bruna Lombardi, e de um Hermógenes, o grande vilão, magistralmente incorporado por Tarcisio Meira.
Muitas interpretações já foram feitas desta obra, e comentadores mais habilitados que eu já a estudaram e escreveram sobre ela. Quem tiver interesse em conhecer mais sobre o livro e seu autor encontrará farto material disponível na Internet e nas livrarias. Meu interesse e meu objetivo são menos audaciosos, e não vão além de prestar homenagem a esse grande escritor, compartilhando com meus leitores algumas pedras preciosas garimpadas nesse que é um dos meus livros de cabeceira.
Guimarães Rosa reitera muitas vezes, ao longo de sua obra-prima, que “o sertão está em toda parte”, ou seja, que o sertão nada mais é do que uma metáfora do mundo, da vida, dos encontros e desencontros humanos. Somos todos sertanejos, temos nossas batalhas ferozes a lutar e os nossos desertos a vencer; vivemos amores impossíveis, e outros nem tanto, e encontramos consolo no sexo e na amizade; somos atormentados por dúvidas e tentações, e somos muitas vezes obrigados a negociar com o Diabo.
A condição humana, paradoxalmente tão universal e tão particular, é o tema de Grande Sertão (o mesmo tema de todas as grandes obras literárias!). Somos o que somos, temos unicidade, particularidade, individualidade. No dizer de Riobaldo, “eu toda a minha vida pensei por mim, forro, sou nascido diferente. Eu sou é eu mesmo. Diverjo de todo mundo...” Ainda assim, somos um permanente devir, um vir-a-ser, um projeto inacabado, um caminho a ser descoberto. “O mais bonito importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam”.
Aquilo que chamamos identidade, e que tem por origem etimológica o termo “idem”, ou seja, aquilo que supostamente permanece o mesmo, nada mais é do que uma coleção de recortes, de memórias, de registros intercambiantes e por vezes sobrepostos, e que nos confere a sensação de sermos provisórios, contraditórios e inacabados. Nas palavras de Riobaldo, “a lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos, cada um com seu signo e sentimento, uns com os outros acho que nem não misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo as coisas de rasa importância. De cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela hoje vejo que eu era como se fosse uma pessoa diferente”.
É nas veredas, nos atalhos da vida, que vamos sendo e deixando de ser, que vamos nos descobrindo únicos e múltiplos. Talvez, no mundo atual, sejamos ainda mais multifacetados, sujeitos a uma diversidade de estímulos e possibilidades que nos colocam em xeque permanentemente, nos fazendo perguntar: qual desses sou eu? onde está minha verdadeira essência? o que quero ser, para além dos papéis sociais que desempenho? E é isto que faz a psicologia contemporânea se perguntar, cada vez mais: existe, de fato, tal essência, para além das diversas formas como cada um se revela e se contrói, em cada diferente momento, em cada diferente contexto?
Guimarães Rosa discute essas questões com estilo, com uma prosa única e com a complexidade que elas exigem. É porque ele, Rosa-Riobaldo, conhece os perigos que o sertão esconde, que não se cansa de repetir que “viver é negócio muito perigoso...”. É por isso que ele tantas vezes reconhece e dá voz a um dos nossos mais primitivos sentimentos: o medo...