28 novembro 2006

Os vínculos de reconhecimento (III)

Continuação da série de artigos que venho publicando aqui (parte I, parte II), sobre a importância do reconhecimento do outro na construção da identidade.

Cultura local e cultura global: existe conflito?

Em tempos de globalização, tornam-se borradas e evanescentes as referências de tempo e espaço, próprias das sociedades tradicionais. De forma geral, as pessoas nasciam e morriam no mesmo lugar, permaneciam na mesma classe social, ocupavam tarefas e cargos dentro de uma comunidade que as conhecia e que servia de base para que cada um soubesse muito bem “quem era quem”. Hoje, os meios de comunicação e os meios de transporte tornam o mundo cada vez menor, e os lugares cada vez menos diferente dos demais. Além disso, o rompimento com as tradições culturais locais e o enfraquecimento do papel moderador da autoridade religiosa expõem a indivíduo ao desafio de manter um frágil equilíbrio entre o seu núcleo de identidade pessoal e as incontáveis alternativas de ser e estar num mundo onde tudo vale, tudo pode.

Como já foi dito na segunda parte deste artigo, a manutenção da identidade pessoal depende de um jogo entre duas forças opostas e complementares: a vontade de ser único e a vontade de fazer parte. Nas sociedades contemporâneas, a ênfase dos discursos vem recaindo progressivamente sobre a primeira parte da equação: ser único, ser individualista, ser exclusivo, ser original. Entretanto, ao mesmo tempo em a mídia impõe padrões cada vez uniformizantes de beleza, de moda, de consumo e de comportamento em geral, criam-se variações dos modelos, dissidências, e agrupamentos secundários por faixas etárias, por origens étnicas, ou por estilos de comportamento.

Além disso, existem mecanismos pelos quais as pessoas, e as sociedades locais, reagem às tendências globalizantes tanto da economia e da política, quanto da cultura. Afinal, não basta a ninguém se saber parte de um mundo único, ou seja, não é possível sentir-se “fazendo parte” apenas de uma grande sociedade humana, globalizada. Assim, as pessoas tendem a buscar sua identidade através de grupos menores e de segmentos sociais mais específicos. De fato, “globalidade” e “localidade” são dois extremos de um continuum, ou duas faces da mesma moeda. Tanto mais Florianópolis é invadida por imigrantes de outras partes do Brasil, em busca de melhor qualidade de vida, tanto mais a identidade de “manezinho da Ilha” e a cultura nativa são valorizadas.

É aí que entra a atual tendência ao neotribalismo e aos fundamentalismos religiosos e nacionalistas. O sociólogo Zymunt Bauman tem assinalado que a contemporaneidade é igualmente uma era de revalorização da comunidade e de um paradoxal apego às formas de filiação e pertencimento. Há uma reação diante do risco de fragmentação e homogeneização cultural. Mesmo em nosso meio existe o fenômeno das tribos urbanas, embora não tenha a magnitude dos grandes centros metropolitanos. Versões light do neotribalismo podem ser vistas, principalmente entre os adolescentes, na apropriação da moda e nas diferentes comunidades de interesses (os gls; os naturalistas, alternativos e ecológicos; os militantes políticos e engajados; os malhados, os surfistas, os desportistas de todo gênero; os funkeiros, os pagodeiros, ou a turma da mpb; os mais intelectualizados e os nerds, etc).

O processo de multiplicação de agrupamentos por interesses específicos, de comunidades e tribos urbanas, gera igualmente uma segmentação de mercado que, por sua vez, realimenta e perpetua o processo inicial. Surgem publicações cada vez mais específicas, dirigidas aos mais diferentes interesses; lojas de roupas e acessórios são cada vez mais direcionadas a segmentos específicos; bares, casas noturnas e locais de encontro se especializam. As pessoas são forçadas a encontrar a própria tribo e a consumirem aquilo que as identifica como membros de cada comunidade. Nas palavras de uma estudante universitária, “é terrível, porque quando não se quer pertencer a tribo nenhuma, ainda assim tu acabas sendo enquadrada em algum lugar, nem que seja porque um dia tu apareceste com uma roupa e alguém te chamou de alguma coisa, e assim ficou. Porque é necessário ser qualificado. Ninguém pode não ser simplesmente nada...”.

Em última instância, toda identidade é “grupal”. No entanto, o termo é utilizado geralmente para se referir aos aspectos mais evidentes das identificações com grupos ou comunidades. De fato, há um processo de dupla mão, no qual a comunidade reconhece o indivíduo como um dos seus, e o indivíduo reconhece os modelos fornecidos pela comunidade. Os membros de um grupo compartilham sistemas simbólicos e geralmente têm os mesmos tipos de experiências. Assim, as identificações grupais se constituem em estratégias de manutenção da segurança ontológica e de sobrevivência psíquica.

Num mundo marcado por intensas e profundas mudanças, as pessoas buscam e reforçam as identidades grupais de diferentes naturezas, inclusive aquelas criadas pelas novas tribos urbanas. Em todos os casos, é a busca por pertencimento e reconhecimento que está na raiz dos agrupamentos sociais.

2 comentários:

Anônimo disse...

Está aí o lado sociológico do psiquiatra. Bom, são disciplinas que se podem valer uma da outra.

Abs
Aluízio Amorim

P.S.: Quanto ao "pertencimento", devo confessar que não desejo pertencer não...hehehe ...cada vez mais me torno um anacoreta...huahuahua...

Ercy Soar disse...

Muito pertinentes os seus comentários, Arthur. De fato, talvez a escolha da palavra "invasão" não tenha sido feliz, porque dá margem a essa conotação negativa que vc aponta. Nesse sentido, sou eu também um "invasor". Não foi o que tinha em mente quando escrevi, pois não pretendi fazer do texto um libelo contra a imigração. Enfim, ficará assim, fomentando a discussão...
Obrigado pelos comentários.
Abraço,
Ercy